Crise Académica/50 Anos: Crise em Coimbra foi "escola fantástica de solidariedade" -- Alberto Martins

A crise de 1969 em Coimbra foi "uma escola fantástica de solidariedade" e em nome dela "arriscaram pessoalmente o futuro" muitos estudantes, recorda o jovem que há 50 anos desafiou o regime com um simples "peço a palavra".

"O peço a palavra mudou a minha vida. Acho que aquele gesto e a crise de 1969 mudou a vida de todos os que estavam em Coimbra naquele ano. Foi uma escola fantástica de solidariedade. Foi duro, terrível, mas também um momento de grande libertação. Foi uma revolução cultural, até porque foi houve uma grande afirmação das mulheres na academia", lembra Alberto Martins, em entrevista à Lusa a propósito dos 50 anos da Crise Académica, que se assinala na quarta-feira.

Cumprida por 86% dos nove mil estudantes de Coimbra, a greve aos exames não se limitava a um "levantar de mão e dizer estar a favor", antes significava "arriscar pessoalmente parte da vida futura", numa "decisão de uma gravidade e exigência pessoal brutal", podendo significar rumar à guerra colonial, por exemplo.

"Significava perder o ano ou as bolsas, ser incorporados no serviço militar ou perder os apoios familiares", recorda Alberto Martins, hoje com 73 anos.

O então presidente da Associação Académica de Coimbra recorda os meses que se seguiram a 17 de abril de 1969 como momentos "de grande solidariedade" e negação do "individualismo", porque "ali não houve salve-se quem puder".

"Ou nos salvamos todos, ou arriscamos todos", resume.

"É impressionante que o grande motivo da greve às aulas e aos exames tenha sido a solidariedade com a repressão que se seguiu ao peço a palavra", sublinha.

Em 1969, "Coimbra é lugar de grande sonho, de grande risco, de grande coragem, de grande solidariedade", resume.

"O sonho estava ao alcance do nosso horizonte e da nossa vontade. Tínhamos necessidade de ter o sonho. O nosso objetivo era 'Por uma Universidade Nova' e esse objetivo só era possível numa sociedade nova", justifica.

Coimbra era, também, um "grande espaço da liberdade enquanto liberdade, num país em ditadura", mas também "da liberdade de escolher e de grande solidariedade".

"A solidariedade nega tudo o que é individualismo ou salve-se quem puder", descreve.

A greve às aulas foi "cumprida a 100%" e a greve aos exames "cumprida por 86% dos nove mil estudantes" de Coimbra.

"Isto é único na história da resistência à ditadura. É a maior manifestação de sempre de estudantes contra a ditadura", sublinha.

Por entre a utopia, "a necessidade de sonhar com a democracia e o fim da guerra colonial" e uma "solidariedade comovente", havia a "violência" de uma Universidade "cercada" pela "guarda republicana e arame farpado".

Na altura, Marcelo Caetano tinha assumido a presidência do Conselho de Ministros, afirmando-se como "a evolução na continuidade", mas Alberto Martins via "uma ilusória alteração".

Coimbra foi, diz, o "primeiro grande momento em que a identidade repressiva do regime se manifesta de forma muito violenta".

"A ditadura tinha um nó górdio que Marcelo Caetano não foi capaz de resolver, que era a guerra colonial, na altura já em três frentes -- Guiné, Angola e Moçambique", descreve.

Jovens académicos acabaram presos, integrados no serviço militar, enviados para a guerra.

Os professores da Universidade "solidarizaram-se" com os alunos e tiveram a "iniciativa" de pedir para os estudantes "a amnistia dos crimes políticos, o arquivamento dos processos disciplinares, a restituição dos que quisessem à vida civil, a reabertura da Associação Académica".

"Caiu o reitor e o ministro", recorda.

ENTREVISTA: Crise Académica/50 Anos: O "peço a palavra" foi "no momento rigorosamente certo" -- Alberto Martins

A decisão estava tomada, "a tensão" subia, a "alma cresceu" perante o ruído de colegas a entrar numa sala com "todas as autoridades" do país em ditadura, mas Alberto Martins pediu a palavra no "momento rigorosamente certo".

A avaliação é feita pelo próprio numa entrevista dada à Lusa no Porto, 50 anos depois de aquele "peço a palavra" em Coimbra iniciar uma crise académica de meses, com greve às aulas e exames, encerramento da Universidade e cerco policial às faculdades da alta da cidade, transformando os estudantes em "grandes protagonistas da História" e a data de 17 de abril de 1969, que se assinala na quarta-feira, "num afluente da queda da ditadura em Portugal".

"A esta distância, acho que pedi a palavra no momento rigorosamente certo. Falou o reitor, o decano da Faculdade de Ciências, vai a soerguer-se o ministro das Obras Públicas e levanto-me. Era aquele o momento: 'Em nome dos estudantes da universidade de Coimbra, peço a vossa excelência para usar da palavra'. Só então a tensão se alivia. Nessa altura voei. A honra da Academia estava cumprida", descreve o então presidente da Associação Académica de Coimbra, na altura com 23 anos, a frequentar o 3.º ano do curso de Direito.

Na cerimónia de inauguração do Edifício das Matemáticas, o Presidente da República, Américo Tomaz, respondeu ao jovem que viria a ser ministro da Justiça dizendo: "Bom, mas agora vai falar o ministro das Obras Públicas".

Alberto Martins ainda ficou "na dúvida", achou a resposta "ambígua", talvez lhe dessem mais tarde a palavra, continuou "a arquitetar mentalmente o que iria dizer", mas houve uma "explosão de aplausos dos estudantes" e os 1.000 a 1.500 que estariam dentro e fora da sala gritavam incessantemente "Queremos falar!".

"Aquele apupar contínuo gerou um barulho impressionante. A comitiva quase foge, em debandada. Abruptamente, Américo Tomaz dá por terminada a sessão e sai depois de falar o ministro da Educação", recorda.

Passadas umas horas, seria preso, interrogado toda a noite, não fora a amnistia concedida aos estudantes a pedido dos professores da academia e o "processo-crime" tinha seguido para tribunal, dando-lhe "seguramente um ano de prisão", talvez três.

Cumprir a decisão tomada na noite anterior de "esgotar todos os meios para usar da palavra" era já "vencer todas as dificuldades, que eram muitas", numa sala onde estavam "todas as autoridades do regime" e "a imagem e o corpo da ditadura", incluindo "autoridades religiosas, altos hierarcas da universidade e da sociedade civil".

A palavra, Alberto Martins tomou-a perante o "apelo dos colegas", que encheram o novo edifício após a debandada da comitiva.

"Para nós, aquela foi a verdadeira inauguração. A comitiva certamente podia ouvir os discursos, porque os altifalantes estavam ligados para o exterior e foram potenciados por alguns dos nossos colegas", relembra.

No discurso, o estudante alertou para os "problemas da universidade de onde tinham sido expulsos vários professores".

A instituição, que os alunos consideravam "dominantemente retrógrada, elitista e que não respondia aos problemas da sociedade", acolhia 25% dos estudantes de todas as universidades portuguesas, totalizando 9.052, 45% dos quais mulheres.

Alberto Martins referiu ainda as preocupações com "o país analfabeto, pobre e subdesenvolvido", que levou "milhares" a fugir "da miséria, da guerra e de uma sociedade paralisada".

De madrugada, Alberto Martins foi preso pela PIDE (polícia política), passou a noite a ser interrogado, libertaram-no na manhã seguinte, a tempo de participar numa assembleia magna em que os estudantes começaram a preparar o contra-ataque ao regime.

Seguiram-se meses de greve às aulas e aos exames e uma final da Taça de Portugal em futebol entre a Académica e o Benfica que levou o luto de Coimbra a todo o país

Lusa - 16 Abril 2019