António Sousa Pereira alerta que ensino superior começa "a sentir as mesmas dificuldades dos hospitais"

António Sousa Pereira, reitor da Universidade do Porto, diz que é imperioso reforçar financiamento do ensino superior, sob pena de universidades portuguesas perderem capacidade de reter talento e atratividade para captar alunos internacionais. Inflação tornou "urgente a revisão do PRR".

A Universidade do Porto acaba de ser distinguida com a melhor posição de sempre (274ª) de uma universidade portuguesa no prestigiado ranking mundial de universidades QS. Uma validação do trabalho de António Sousa Pereira no seu primeiro mandato como reitor e uma fasquia elevada para o segundo mandato, do qual toma posse esta quarta-feira, no salão nobre da Reitoria da UP.

Em entrevista ao DN, o também presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas fala dos projetos para o novo mandato de quatro anos à frente de uma universidade com mais de 32 mil alunos e com investimentos projetados de 100 milhões de euros, das dificuldades devido ao subfinanciamento do Ensino Superior, das expectativas em relação à nova ministra Elvira Fortunato, dos receios do impacto da inflação no abandono universitário e até da crise sentida no SNS, ou não fosse médico de formação.

O que significa a recente distinção do ranking QS e quais são os grandes objetivos a que se propõe neste segundo mandato para consolidar a UP entre as melhores da Europa e do Mundo?

É óbvio que ter este reconhecimento internacional de um ranking como o QS é algo que nos enche de orgulho e traduz o resultado do esforço que foi feito ao longo dos últimos anos. Mas há outro reconhecimento, mais recente e que ainda não foi público, que é o facto de nas 50 agendas mobilizadoras aprovadas no PRR a Universidade do Porto estar em dois terços delas. O que é um reconhecimento nacional porventura até mais importante do que o ranking QS. Obviamente, para início de novo mandato deixa-me satisfeito e implica muita responsabilidade para a Universidade. É um reconhecimento, internacional e nacional, imperioso que seja mantido e que vai ser extremamente difícil de manter porque estamos a competir com uma enorme desigualdade de meios com outras universidades a nível internacional. Não temos nem de longe nem de perto o investimento no ensino superior que há, por exemplo, aqui ao lado em Espanha. E temo que, se não for alterado o rumo que tem vindo a ser seguido, comecemos a ser penalizados com prejuízo para o país, nomeadamente numa componente extremamente importante, para nós e para o país, que é o recrutamento de estudantes internacionais. Todos temos a noção de que a Europa precisa de recrutar pessoas fora do seu espaço geográfico, e as universidades são um espaço privilegiado para recrutar quadros superiores, recrutando estudantes internacionais que depois fiquem cá e nos ajudem a combater os efeitos do inverno demográfico. Mas, se nós tivermos universidades com condições piores do que aquelas que esses alunos têm nos seus países de origem, eles deixarão de vir.

Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.

Apesar desses condicionalismos, que plano de encargos traz consigo para cumprir até 2026?

Temos dois ou três objetivos importantes. Um deles é concretizar o PRR. Neste momento temos dificuldades a aparecer todos os dias, de natureza burocrática, e o país precisa muito de cumprir o PRR. Por isso é preciso simplificar todo o processo burocrático-administrativo para podermos cumprir os objetivos a que nos propusemos, e o próprio País também, com o PRR. Um segundo objetivo é consolidar a nossa posição enquanto universidade de investigação. Já somos neste momento responsáveis por uma fatia muito significativa da investigação produzida no nosso país, e queremos consolidar essa posição e se possível melhorá-la, aumentando as sinergias no relacionamento entre universidade e empresas, mas também entre a universidade e outras congéneres internacionais. E queremos também continuar a investir num modelo formativo que se preocupe em formar pessoas na sua integridade, não apenas numa formação técnica, mas acrescentar uma componente humanista essencial para termos pessoas bem formadas e capazes de enfrentar os desafios futuros.

"Se não for alterado o rumo que tem vindo a ser seguido, podemos começar a ser penalizados numa componente extremamente importante, para nós e para o país, que é o recrutamento de estudantes internacionais"

A formação tem de ser cada vez mais transversal?

Cada vez mais as formações que oferecemos envolvem múltiplas unidades orgânicas, no sentido de dar essa formação transversal que hoje em dia é absolutamente fundamental, e no futuro será ainda mais. Hoje em dia não conseguimos prever o que serão as profissões do futuro. A evolução do conhecimento faz-se a tal velocidade, que nós temos sobretudo de formar pessoas que saibam pensar e adaptar-se aos desafios do futuro.

Está previsto um investimento de 100 milhões de euros na expansão da Universidade, com construção de novo edificado e inclusive um novo campus universitário previsto para a zona da refinaria de Matosinhos...

A Universidade está completamente estrangulada dentro da cidade, não temos muito por onde crescer. Aliás, não temos nada. A cidade do Porto é uma cidade geograficamente muito pequena. E, portanto, surgiu esta oportunidade de criar ali um campus que, na prática, vai acrescentar quase 80% à área da Universidade e vai permitir criar um campus dedicado à ciência e tecnologia, muito focado nas ciências digitais e energias verdes. Se pensarmos num futuro a médio prazo - e isto não é para eu executar, é para deixar as bases para alguém executar ou ir executando à medida que surgirem oportunidades de financiamento -, a ideia é criar naquela zona um campus onde possamos ter toda a área relacionada com a ciência e tecnologia da Universidade. Diga-se: Faculdade de Ciências, Faculdade de Engenharia, os laboratórios de investigação que gravitam nestas duas faculdades, os laboratórios de investigação da própria Galp ligados a estas áreas do conhecimento, mais todo um conjunto de empresas que ficarão instaladas nos terrenos que rodeiam os terrenos da Universidade, empresas de tecnologia ligadas à área digital e à área das energias verdes. Formar aqui um campus muito à imagem dos campus dos EUA, que na Europa quase não existem, com esta proximidade entre universidade e empresas. Existe um parecido com este em Karlsruhe, na Alemanha, mas na Europa não existe muito esta visão de que as empresas com as quais a Universidade vai trabalhar têm que estar perto para haver uma interação mais próxima.

Qual o horizonte temporal para a criação desse campus?

A Galp está na fase de contratar uma equipa de projetistas internacional que vai fazer o desenho de tudo isto e como é que isto vai interagir com a componente deles. Tenho a expectativa de que no futuro tenhamos aqui um campus único de ciência e tecnologia a nível europeu.

É o grande legado que deixará?

Não o vou deixar construído. Provavelmente quando estiver concretizado já estarei noutro sítio, mas estas coisas demoram tempo e alguém tem que lançar o projeto. As negociações com a Galp, com a Câmara de Matosinhos e com a CCDR correram muito bem, estamos alinhados. Há dificuldades, como em todos os projetos desta natureza. Neste momento, ainda não temos concluído o estudo de contaminação dos terrenos, há um pipeline subterrâneo que abastece o aeroporto que cruza os terrenos e vai ter de ser resolvido, para se permitir a construção, haverá esferas de armazenamento que porventura terão de ser desativadas e mudadas de local, porque a Galp vai manter ali alguma capacidade de armazenamento... agora, vamos resolvendo os problemas e quer nós, quer a Câmara, quer a Galp temos muito presentes nas nossas cabeças que queremos ter ali um centro de conhecimento e inovação único.

Qual o horizonte temporal para a primeira pedra?

A primeira pedra julgo que surgirá muito cedo, porque a primeira oportunidade de financiamento é o Fundo de Transição Justa associado ao desmantelamento da refinaria. E com esse fundo podemos começar já a construir algumas infraestruturas, designadamente de investigação e de incubação de empresas, para começar a receber os primeiros ocupantes do espaço.

Mas qual é o horizonte temporal desse "já"?

O "já" é quando tivermos luz verde da descontaminação dos terrenos. Como sabe aqui aplica-se o princípio do poluidor-pagador, quem tem de despoluir os terrenos é a Galp. A Galp tem isso orçamentado, mas para fazer a descontaminação é preciso ter o estudo rigoroso dos níveis de contaminação, dos vários locais e várias parcelas daquele terreno. Esse estudo está a ser feito. Teoricamente, o Fundo de Transição Justa é para ser usado até 2026... com a pandemia e dificuldades inerentes, eventualmente poderemos conseguir um prolongamento deste prazo por parte da Comissão Europeia, mas não será muito mais.

Diz que o foco da Universidade do Porto é trabalhar como uma universidade do futuro. O que é isso de uma universidade do futuro?

A universidade do futuro passa por formações transversais, à medida, e interação estreita com o tecido socio-económico, que é o que nós queremos fazer com este projeto. Ter uma presença forte do ponto de vista de investigação, ajudando as empresas, ajudando a economia e permitindo desenvolver conhecimento, que é a nossa missão número um. Ou número dois, digamos assim, além da formação dos nossos estudantes, que nós pretendemos que seja uma formação em que eles contactam com o ambiente de investigação, caso contrário perdemos a atratividade que temos neste momento.

Subfianciamento do Ensino Superior

Onde é que esses planos de inovação e competitividade esbarram com a realidade que o Conselho de Reitores, ao qual preside, denuncia, de um subfinanciamento do ensino superior?

O que tem acontecido é que desde 2009 acabou o PIDDAC, que era um programa de financiamento competitivo a que as instituições podiam recorrer para novo edificado, reabilitação do edificado existente e até para refazer o equipamento. Esse programa acabou e nunca mais foi substituído por nada. Acrescente-se a isso que em 2011 foi introduzida a obrigatoriedade de as instituições de ensino superior passarem a descontar para a Caixa Geral de Aposentações. Ou seja, sobre a totalidade dos salários pagos nas universidades e nos politécnicos passou a descontar-se 23,5%, num cenário em que o Orçamento de Estado cobre cerca de 80% da massa salarial, o resto é pago a partir de receitas próprias. Isto significa que, na realidade, nos últimos anos, temos um orçamento que comparativamente com o de 2009 é inferior. Em termos reais é superior, mas em pocket money, dinheiro disponível para gastar, é inferior. Portanto, temos um cenário em que temos abdicado de fazer investimentos, nomeadamente na reabilitação e manutenção do edificado. E isto é como tudo: se eu tiver um carro, se calhar consigo falhar a primeira revisão, talvez até a segunda, mas a partir daí corro o risco de ficar com o carro parado no meio da estrada e ter de pagar um conserto muito maior do que se tivesse feito as revisões. É esta a situação em que está o ensino superior neste momento. Aquilo que temos vindo a reivindicar é a necessidade de termos um reforço no financiamento do ensino superior. Até porque começamos a ter uma dificuldade que já é sentida, por exemplo, nos hospitais. Ou nós criamos condições atrativas e conseguimos reter os melhores nas instituições ou arriscamo-nos que os melhores sejam perdidos para sempre e vão para a iniciativa privada, que oferece melhores condições, oferece melhores salários, etc. E nós acabaremos por ficar com um ensino superior que não é competitivo, que é a pior coisa que se pode fazer a um país como o nosso.

"Temos um orçamento que comparativamente com o de 2009 é inferior. Em termos reais é superior, mas em pocket money, dinheiro disponível para gastar, é inferior."

Já sentem essas dificuldades de retenção de talento?

Muito. Há áreas do conhecimento em que claramente as pessoas se vão embora. Há 20 anos era fácil reter médicos, engenheiros, economistas, informáticos no sistema. Hoje em dia não é. Quem é que a gente consegue reter? Muito pouca gente. É preciso olhar para isto de frente. Existe muito a ideia de que a administração pública é bem paga, mas isso não é verdade. Hoje qualquer empresa paga melhor. Veja-se o que está a acontecer nos hospitais. Quer dizer, nós pagamos aos médicos especialistas um salário miserável e depois ainda por cima queremos arranjar um esquema para resolver os próximos três meses. Não percebemos que isto é um problema estrutural e que é preciso arranjar um esquema para os próximos anos.

Crise na Saúde

Não concorda com a necessidade de abertura de mais vagas para formação de médicos?

Parece que a solução que descobriram para resolver agora os problemas de obstetrícia vai ser abrir novas escolas de medicina, o que me parece uma coisa extremamente inteligente, porque os primeiros indivíduos formados pelas novas escolas de medicina vão surgir daqui por 14 anos, será muito útil para resolver o problema deste verão e dos próximos. O que me preocupa verdadeiramente no sistema é a incapacidade dos grandes hospitais manterem a sua capacidade formativa. E isto não é uma questão corporativa. Eu não posso chegar a um grande hospital da capital, que numa determinada especialidade tem um único especialista no serviço, e dizer que este serviço tem capacidade formativa. Com o devido respeito, eu, se um dia precisa de ser operado, quero ser operado por alguém que tenha aprendido a operar, que não tenha feito um curso no Youtube. Não é a formar especialistas no Youtube que se resolve o problema. Nós temos de ter, primeiro, hospitais a funcionar a sério. Para isso, é preciso pagar salários que sejam competitivos com o privado e, na minha opinião, nem precisam de ser os mesmos do privado, porque o público pode oferecer uma coisa que o privado não oferece, que é a oportunidade de carreira, de fazer investigação, de ter acesso a um case mix diversificado, de ter acesso a ensaios clínicos... isso deve ser valorizado. Agora, não chega valorizar isso, é preciso dinheiro para pagar as compras e a renda de casa. Se houver esta preocupação e voltarmos a ter hospitais públicos capacitados, resolvemos o problema.

Sem necessidade de mais médicos?

Aí não é preciso mais médicos. Repare, o que é que aconteceu? Em 2009 a ministra Ana Jorge acabou com a exclusividade. Quem tinha exclusividade manteve-a, quem não tinha já não pôde voltar a pedir. Em 2009 não havia a concorrência do privado. As pessoas ficaram descontentes, mas não tinham para onde ir. De 2009 até hoje, os hospitais privados apareceram como cogumelos por todo o lado. E são competitivos. E levam os médicos para lá. Se [os médicos] têm uma vida mais tranquila e um salário melhor no privado, estão à espera de quê?

Em 2009 a ministra Ana Jorge acabou com a exclusividade. As pessoas ficaram descontentes, mas não tinham para onde ir. De 2009 até hoje, os hospitais privados apareceram como cogumelos por todo o lado"

Portanto, é apenas uma questão de valorização de carreira...

Têm de valorizar as carreiras e têm de valorizar as pessoas. Deixar de olhar para as pessoas como mão-de-obra barata. Porque um dia mais tarde todos nós vamos pagar isso. Porque a medicina está a diferenciar-se muito e nós precisamos de pessoas com conhecimento e que trabalhem em ambientes cooperativos onde possam desenvolver os seus skills. E assim corremos o risco de começar a claudicar em áreas críticas, porque se perde esta cultura.

Expectativas sobre a nova ministra

O Orçamento do Estado 2022 contempla um reforço de verbas para o ensino superior. É insuficiente?

O aumento para o ensino superior é de 2%, o que é neste momento é manifestamente insuficiente. Temos aumentos de 400% na conta do gás, aumentos de 400% na conta da eletricidade, um aumento geral de 8% em termos de taxa de inflação média, mas a situação real é muito pior. Neste momento não conseguimos sequer comprar matérias-primas para o funcionamento das cantinas. Não há ninguém que forneça carnes, batatas, couves, arroz a 15 dias de distância. No caso das obras, temos obras abandonadas. Os empreiteiros chegam à conclusão que fica mais barato pagar as multas do que continuar com a obra até ao fim. Por isso, não sabemos como a situação vai evoluir, sabemos que os 2% de aumento que tivemos para este ano são manifestamente insuficientes.

Subscreve, portanto, a posição dos Politécnicos, que já vieram dizer que "não podem manter o mesmo nível de despesa" se não forem compensados pelos efeitos da inflação?

É uma evidência que não vale a pena tentar negar. Esperamos que haja uma atitude responsável por parte do governo para resolver isto. O governo gosta de olhar para as universidades e dizer que as universidades têm saldos. Temos saldos porque fazemos investigação e temos muitos projetos em que recebemos o dinheiro por antecipação. E portanto quando transitamos o dinheiro em saldos, muito daquele dinheiro tem destino definido, não podemos gastar como nos apetece. É dinheiro que está à nossa guarda, mais do que dizer que é nosso.

Neste momento não conseguimos sequer comprar matérias-primas para o funcionamento das cantinas

A ministra Elvira Fortunato já admitiu que o modelo de financiamento do Ensino Superior é injusto e pretende simplificar e flexibilizar regras de execução financeira e de contratação pública. Já se reuniu com a ministra também, presumo. Que expectativas tem?

A ministra foi reunir com o Conselho de Reitores e tivemos aí o primeiro contacto. As minhas expectativas são as de que ela tenha o conhecimento, principalmente do sistema científico, que a leve a reivindicar junto do governo alterações que são absolutamente fundamentais. Nomeadamente a simplificação da gestão, que é absolutamente crítica.
Neste momento assistimos a um arrastamento das universidades e dos institutos de investigação para o perímetro de consolidação da administração pública - incluindo as fundações, que foram criadas com o objetivo agilizar a gestão, mas foi sol de pouca dura. Somos tratados como a Carris ou outra empresa qualquer, temos de obedecer às mesmas regras, não há exceções para nada.

Precisamos, para manter a competitividade com os nossos parceiros europeus, de ter regimes que facilitem a gestão. No nosso país opta-se muito por se dizer, à cabeça, que todos são um bando de malfeitores. Portanto, antes de irem comprar ali fora cinco tostões seja do que for têm de provar que cumpriram os processos x e y. Gastamos muito mais em papéis para tratar a burocratização do processo do que o valor da transação em si. Eu defendo uma gestão simplificada, mas com auditorias rigorosas e penalização para quem prevarica. Nos contactos que vou tendo com colegas de outras universidades, nomeadamente das nossas universidades parceiras na aliança europeia, vejo que da parte dos governos respetivos há uma grande ajuda ao crescimento das universidades e à simplificação dos processos. No nosso país, vamos piorando cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais...

Encontrou recetividade na ministra? Receberam algum compromisso por parte de Elvira Fortunato?

Ela também não pode fazer esse compromisso. Tem o poder que tem. Pode lutar pelas coisas, mas há mais alto quem tenha de decidir. Até este momento não tivemos ainda grandes notícias. Mas também o tempo ainda é curto, há um tempo necessário para tomar conta dos dossiers. E acredito que ao nível da ciência tenha um conjunto de problemas porventura até mais complicados do que ao nível do ensino superior. Aquilo que estamos à espera é que até às férias haja uma nova reunião com o CRUP em que a equipa do ministério nos dê nota de quais são as suas linhas de ação prioritárias e o que é que tencionam fazer. Até agora não temos nenhum sinal.

Inovação e carreira científica

Inovação é palavra chave na oferta diferenciadora da Universidade. A Universidade do Porto é líder em produção de ciência em Portugal e no número de pedido de patentes. Um dos principais objetivos estratégicos para o novo mandato é reforçar a articulação com empresas e indústria. O que está planeado nessa área?
Temos um projeto ganhador no terreno que é o UPTEC, frequentemente apontado como exemplo no fomento da inovação e empreendedorismo. Mas é curto. Desde logo porque a UPTEC só tem laboratórios secos. Nós precisamos urgentemente de ter uma incubadora para laboratórios húmidos na região. Queremos muito desenvolver isso. Essa é uma vertente. A outra é formar os estudantes em empreendedorismo, incluir a temática nas atividades curriculares dos alunos, para que eles possam depois ser geradores de novas formas de enfrentar o mercado e transformar ideias em produtos, algo em que o nosso país ainda tem alguma dificuldade. Transformar a inovação em mais valia económica.

Uma condição fundamental para essa inovação e para os bons rankings das universidades é a qualidade da investigação produzida. No entanto, as universidades têm demonstrado uma resistência em relação à vinculação dos investigadores. Porquê?

Eu não apresentaria o problema assim. Há uma agência que financia a investigação em Portugal, que é a FCT. As universidades não recebem dinheiro sequer para pagar aos docentes. Uma das soluções que apresentámos já, numa proposta para resolver o problema dos precários, era que o dinheiro que a FCT está a gastar a pagar a investigadores fosse transferido para as universidades e estas incorporavam os investigadores com a condição de esse dinheiro ser exclusivamente para esse fim. Agora, não temos máquinas de fazer dinheiro. Temos de gerir os fundos que nos dão e aqueles que conseguimos depois angariar. A outra solução cuja discussão não tem sido feita é que, provavelmente, justificar-se-á haver uma maior permeabilidade de carreiras. O investigador não é um indivíduo incapaz de dar aulas. Porque é que o investigador não há de poder ser integrado na carreira docente? Até é uma mais-valia para a própria docência. Mas aqui tem havido também alguma resistência por parte dos investigadores. Não é o caso da Universidade do Porto, mas não é uma coisa pacífica. Penso que para resolver o problema dos precários e dos investigadores temos de ter múltiplas soluções em cima da mesa e boa vontade para discutir isto.

O investigador não é um indivíduo incapaz de dar aulas. Porque é que o investigador não há de poder ser integrado na carreira docente?

Tem havido falta de vontade de quem?

Acho que antes de mais falta definir uma verdadeira política científica em Portugal. Em relação às universidades sabemos as linhas com que nos cosemos, sabemos que estamos subfinanciados e vamos equilibrando as coisas. Do lado da investigação é verdadeiramente terrível a situação de indefinição em que vive a maior parte das pessoas. Devo dizer que fico um bocado chocado ao ver pessoas que aos 50 anos viveram toda a vida de bolsas. Isto não é vida para ninguém. Penso que esse será um dos principais trabalhos que a ministra Elvira Fortunato tem pela frente. Um trabalho com uma dimensão tal que poderia ser acrescentado aos trabalhos do Hércules.

Ação e apoio social

Ação Social é outra das prioridades apontadas para este mandato. As dificuldades de alojamento são um dos principais fatores de abandono do ensino superior. Qual o compromisso da Universidade do Porto neste campo?

O compromisso neste momento é o seguinte: nós temos um PRR para construção de alojamento estudantil. Mas o PRR tinha um pecado original, pois não permite a aquisição de terrenos. Só permite a construção se já formos os donos dos terrenos. Acontece que a Universidade do Porto não tem terrenos para construção. De maneira que aquilo que arranjámos foram dois edifícios que vão ser reabilitados e transformados em alojamento universitário e esperemos que a negociação com o PRR corra bem. Depois temos outro problema: é que o preço base por quarto foi calculado antes do começo da guerra da Ucrânia e ainda não foi revisto. Aquilo que está previsto no PRR não dá para nada agora. Já não dava antes, mas com o aumento que houve na construção civil é que não dá mesmo. Por isso, tem que haver alguém que olhe para o PRR e que diga: ok, é este dinheiro? Vamos deixar de números fantasiosos e vamos construir o que é possível nas circunstâncias atuais com o dinheiro que temos. Esse é o primeiro ponto. E aí nós temos um projeto nosso e temos um projeto em parceria com a Câmara do Porto que prevê a construção de 800 camas no total. Nós achamos que conseguimos construir isso. É sempre relativo, porque não sabemos como vai evoluir a situação, mas se não se alterar muito em relação àquilo que está, achamos... mas, é bom que fique claro, para fazer isso vamos ter de abandonar outros investimentos na universidade. E achamos que o financiamento do PRR devia ser ajustado para isso. A segunda questão tem a ver com o seguinte: numa cidade como o Porto, a ideia de que os estudantes têm de ficar alojados próximos do centro é uma ideia sem viabilidade. Porque com a concorrência do turismo que existe neste momento, é impossível. Mas é possível fazer como noutras grandes cidades europeias. Quando alguém vai estudar para Londres ou para Paris, não lhe passa pela cabeça que vai ficar a viver no centro, vai para a periferia que é onde há alojamento acessível. Nós fazemos a nossa parte, que é aumentar a capacidade: temos 1100 camas e queremos aumentar 800 camas, que hão de estar prontas daqui por três ou quatro anos. No entretanto, é preciso passar a mensagem que há uma rede de transportes no Porto e é possível arranjar alojamento ao longo das linhas de comboio ou de metro a preços mais razoáveis, se as pessoas estiverem disponíveis para ir para a Maia, Matosinhos ou Gondomar.

O problema do alojamento é um problema preocupante e, até haver soluções estruturadas, vai ter de ser resolvido com subsídios que a ação social vai dando a quem não tem alojamento em instalações da universidade.

numa cidade como o Porto, a ideia de que os estudantes têm de ficar alojados próximos do centro é uma ideia sem viabilidade.

Mas os critérios para esses subsídios são bastante apertados, segundo as queixas dos alunos...

São bastante apertados e não podemos continuar a meter a cabeça na areia e fazer de conta que não existe inflação em Portugal. Existe e bateu forte nas famílias. E a ação social tem de ser rapidamente revista nos seus limites para incorporar este efeito da inflação sob pena de assistirmos a alguns efeitos catastróficos.

Teme que essas agravantes se reflitam no próximo ano letivo em maior abandono universitário?

Devo confessar que no próximo ano letivo temo tudo. Temo o efeito da diminuição de alunos no 12.º ano, que é real e se vai acentuar nos próximos anos devido à baixa da natalidade, temo o efeito da competição da indústria do turismo, que está neste momento com enorme défice de funcionários e contrata muita gente jovem que pode ser tentada a abandonar os seus estudos por troca com um emprego imediato que lhes dá alguma sustentabilidade económica... portanto, estou para ver o que dá o próximo concurso nacional de acesso.

No próximo ano letivo temo tudo. Temo o efeito da diminuição de alunos no 12.º ano e temo o efeito da competição da indústria do turismo, que está neste momento com enorme défice de funcionários e contrata muita gente jovem.

Uma outra razão de abandono escolar em Portugal são as propinas. Vai ser possível algum dia ter ensino superior público efetivamente gratuito em Portugal?

Neste momento não me parece que esse seja um problema, sinceramente. Acho que essa discussão é um fator tal de perturbação que o governo faria melhor em acabar com elas e, por exemplo, passar a taxar os parques de estacionamento aos estudantes. Se calhar ficava a ganhar. Nos últimos anos foi feita uma opção, que foi baixar as propinas a toda a gente, quando as universidades disseram que se havia folga para descer as propinas que deixassem estar as propinas como estavam e reforçassem com esse dinheiro a ação social escolar. Tinha sido uma forma mais justa de fazer a redistribuição. Optou-se por baixar as propinas a todos e não reforçar a ação social escolar. Acho que foi um erro. Neste momento, estamos com a propina de 600 e pico euros (697). São dois meses de um quarto que um estudante paga. Acho que na disposição da despesa mensal que um estudante tem, 60 euros de propina mensal é um valor absolutamente insignificante, porque têm outras despesas muito mais significativas: alojamento, alimentação, transporte, etc. Sendo que há um grupo muito significativo de estudantes que não pagam propina, os alunos que têm dificuldades económicas não pagam propina, são bolseiros. Sinceramente, acho que com a atual situação no país era preferível reforçar a ação social, eventualmente aumentar os tais limites para se poder beneficiar de bolsa e usar este dinheiro para pagar a bolsa aos mais necessitados.

É uma decisão política na qual não nos queremos meter. Se o governo decidir acabar com as propinas, acabe. Agora, tem de pensar uma coisa: as instituições precisam desse dinheiro para sobreviverem, porque aquilo que vem do Orçamento de Estado não chega para pagar os salários. Há aqui uma contradição insanável, que é esta: teoricamente, as propinas serviriam para melhorar a qualidade do ensino, na realidade estão a servir para necessidades básicas do sistema, se não nós aguentamos. Portanto, se acabarem com as propinas, fantástico, agora tem de haver uma compensação, caso contrário não é possível funcionar.

É uma decisão política na qual não nos queremos meter. Se o governo decidir acabar com as propinas, acabe. Agora, tem de haver uma compensação: as instituições precisam desse dinheiro para sobreviverem

Casos de assédio

A ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato, escreveu uma carta dirigida às instituições de Ensino Superior com recomendações para combater os casos de assédio moral e sexual em contexto académico. Na Universidade do Porto soube-se do caso de um despedimento de um professor. O que tem sido feito para lidar com o fenómeno?

Temos neste momento, vai ser aprovado esta tarde [segunda-feira], o canal de denúncias. Até agora, as coisas têm funcionado através de diretores de curso, associações de estudantes, provedor do estudante... Mas admitimos que pode haver casos de algumas pessoas que não se sentem confortáveis com esses mecanismos e apresentamos o canal de denúncias.

E como vai funcionar esse canal?

Esse canal de denúncias será um canal informático onde as pessoas têm de se identificar mas é garantida a confidencialidade no sistema. Depois há uma comissão presidida pelo professor Sarsfield Cabral, professor jubilado da Faculdade de Engenharia, e tem representantes da Faculdade de Direito, da Faculdade de Psicologia e dos estudantes. E essa comissão vai analisar as queixas e avaliar quais as que merecem ter seguimento.

Até agora, tirando esse caso que resultou em despedimento do professor, não tem havido mais casos?

Temos tido vários casos, para dizer a verdade. Acho que estamos permanentemente com casos em investigação, a maioria dos quais são coisas passionais. E curiosamente é mais entre estudantes ou entre docentes, não é tanto entre estudantes e docentes. Temos de tudo. Numa instituição que tem 32 mil alunos e 6 mil professores e funcionários tem de haver de tudo, como é óbvio. Tivemos esse despedimento depois de seguidos todos os trâmites, o que é uma coisa que causa complexidade a muita gente, como é que se demorou tanto tempo. Têm de ser seguidos os trâmites legais. E ainda hoje não está resolvido o caso, porque o professor meteu uma providência cautelar e está à espera de decisão do tribunal.

Acho que estamos permanentemente com casos [de assédio] em investigação, a maioria dos quais são coisas passionais. E curiosamente é mais entre estudantes ou entre docentes, não é tanto entre estudantes e docentes.

Elevador social e desvalorização profissional do grau académico

Há em Portugal mais licenciados que na média da UE, segundo o Eurostat, mas na OCDE Portugal é o país onde ter um diploma de ensino superior mais deixou de contar para ter uma remuneração elevada. O que está a falhar no elevador social que é suposto ser o ensino superior?

Está a falhar a falta de visão da nossa sociedade na valorização da formação superior. Quando nós temos uma sociedade em que um trabalhador da construção civil ganha mais do que um engenheiro e um técnico de frio com uma formação média ganha mais do que um profissional de arquitetura, algo vai muito mal. Agora, nós temos aqui algumas idiossincrasias que precisamos de resolver. Estamos a perder alguns dos nossos melhores jovens para o estrangeiro e assobiamos para o lado. Desde logo no próprio Estado. Fiquei muito satisfeito quando vi o nosso primeiro-ministro dizer que queria aumentar 20% nos salários, mas era importante começar por dar o exemplo na administração pública, onde estamos com muita dificuldade em segurar técnicos superiores.

Os nossos doutorados, muitos deles de elevadíssima qualidade, não estão a ser valorizados pelas empresas. Mas é possível criar programas para fazer sentir essa necessidade nas empresas. Por exemplo, se criássemos um programa em que colocássemos doutorados nas empresas e o Estado assegurasse uma parte do salário durante um determinado período de tempo, tenho a certeza que a melhoria e inovação que eles iam introduzir nas empresas iria fazer com que ao fim desse período as empresas fossem reconsiderar e já não quisessem que eles saíssem. Agora, é preciso criar estímulos...

Fiquei muito satisfeito quando vi o nosso primeiro-ministro dizer que queria aumentar 20% nos salários, mas era importante começar por dar o exemplo na administração pública

Tem que ser o Estado a injetar esse estímulo à economia?

Tem que ser, é para isso que serve o Estado. Uma coisa que temos em Portugal são empresas de base muito familiar. E essas empresas têm que ter estímulos para que valorizem o conhecimento e a inovação. E o Estado aí deveria ter um papel importante.

Mas a oferta formativa não está desajustada também à realidade do mercado de trabalho?

Essa é uma conversa interessante... A oferta formativa nunca está desajustada da realidade do mercado de trabalho, porque não serve para a realidade do mercado de trabalho. Um sistema de ensino superior serve para que todos os nossos jovens possam desenvolver ao máximo todo o seu potencial. Se tem um filho que gosta de ser arquiteto e ele tem vocação para ser arquiteto, ele deve ser arquiteto, independentemente da sociedade precisar ou não. Além de que, eu vou estar a condicionar a oferta formativa à realidade do mercado de hoje? Eu sei lá o que vai ser o mercado de amanhã. O que é importante é ter pessoas bem formadas, que sejam felizes e façam o que gostam.

Se tem um filho que gosta de ser arquiteto e ele tem vocação para ser arquiteto, ele deve ser arquiteto, independentemente da sociedade precisar ou não.

Revisão do acesso ao ensino superior

Atual programa do Governo estabelece a revisão do acesso ao Superior como um dos objetivos. O que espera dessa revisão?

É um processo longo, que tem de ser muito bem discutido. Tivemos nestes últimos anos uma simplificação do acesso e contabilização apenas das disciplinas nucleares. Não me parece que tenha daí decorrido uma diminuição da qualidade dos estudantes nem da sua preparação. Por isso, talvez a pandemia tenha sido o estímulo certo para nos levar a perceber que talvez estivéssemos a ser demasiado complexos na forma como estávamos a selecionar os nossos estudantes para o ensino superior. E talvez a simplificação seja o caminho. Dizia há pouco que Portugal é um com mais licenciados do que a média europeia... a mim não me chocaria nada que tivéssemos 100% da população licenciada. Temos é de valorizar as competências que eles têm. Se não, temos dois efeitos perversos: uma é emigrarem para países onde os valorizam, com uma perda de gente qualificada no nosso país; outro efeito perverso é chegarem ao fim do 12.º ano e perguntarem-se porque é que hão de tirar um curso e estudar não sei quantos anos para tirar arquitetura para depois irem para um gabinete de um arquiteto trabalhar durante não sei quantos anos a ganharem zero, se podem ir para o restaurante da esquina que está a precisar de funcionários e ganhar 1000? E isto tem um efeito perverso que é condenar-nos a uma sociedade atrasada que vive de atividade de baixo valor acrescentado como o turismo.

As médias finais da escolaridade obrigatória como forma determinante de acesso ao ensino superior não distorcem o sentido e a qualidade da formação?

Nos últimos anos, foi-se notando um aumento crescente da qualidade dos nossos estudantes. As famílias portuguesas investem muito na educação das famílias. E as famílias que querem que os filhos tenham acesso aos melhores cursos investem muito na educação complementar. A questão das médias é uma questão que existe em todo o mundo. E é tão complexa que em certos países, como Países Baixos, há sorteio a partir de uma determinada nota estabelecida como cut-off. É uma questão pertinente em todo o mundo. Há sítios em que optam pelas entrevistas vocacionais, como os EUA. É muito difícil quando falamos de acesso falar de sistemas ideais. Eu diria que não há nenhum. Acredito que com a capacidade de oferta instalada no nosso país daqui por dez anos seja possível aos estudantes ir bater à porta das faculdades que querem frequentar e perguntar se o aceitam. Vai haver tanta oferta e tão pouca procura que não sei como vamos lidar com essa situação.

Rui Frias 22 Junho 2022 — Diário de Notícias