Compensar a empresa por pausas para café e cigarros? Em Portugal também pode acontecer

Tribunal espanhol autorizou a Galp Energia a deduzir ao cálculo efetivo da jornada de trabalho o tempo gasto pelos seus trabalhadores em pausas para pequeno-almoço, café ou para fumar. Uma decisão que também seria possível em Portugal, já que a legislação nacional só admite pausas para “satisfação de necessidades inadiáveis”

Em Portugal, as empresas também poderão exigir que os trabalhadores compensem, em prolongamento de horário de trabalho, as pausas realizadas ao longo do dia para beber café ou fumar. A lei prevê-o, mas não há ainda casos conhecidos desta prática.

O debate em torno dos tempos de trabalho e das pausas realizadas pelos trabalhadores está novamente na agenda, depois da decisão conhecida esta segunda-feira de um tribunal espanhol que considerou improcedente a queixa apresentada contra a empresa portuguesa Galp Energia, pela Confederação Sindical das Comissões Obreras, que acusava a empresa de alterar unilateralmente as regras de trabalho na sequência da instalação de um novo sistema de registo de tempo de trabalho, onde as pausas para café e para fumar passam a ser descontadas da jornada laboral de 7,45 horas.

O caso remonta a dezembro de 2019, mas a sentença formal só foi conhecida esta segunda-feira. O Tribunal de Madrid declarou improcedente a acusação, considerando que os trabalhadores estão obrigados a compensar a empresa pelo tempo gasto nas pausas ao longo do dia. A Galp já fez saber que a medida não será replicada em Portugal.

A Confederação Sindical, que já apresentou recurso da decisão, exigia, entre outras coisas, a nulidade do novo modelo de cálculo do tempo, para que não afetasse os intervalos para tomar o pequeno-almoço, um café ou fumar um cigarro, tempos que até essa altura estavam integrados como trabalho dentro da jornada do dia, sem registo ou tempo descontado. Mas o tribunal entendeu-o de forma diferente e legitimou a decisão da Galp de descontar as referidas pausas.

Segundo a sentença agora conhecida, a Galp pode, “de forma unilateral”, regular e estabelecer novos horários em que não se trabalha e que até agora estavam incluídos na jornada de trabalho. No que diz respeito às horas extraordinárias, outra das alterações introduzidas, devem ser autorizadas com antecedência, não sendo aceitável fazê-las e, em seguida, exigir o pagamento. A decisão afetará os trabalhadores das 226 lojas e 623 postos de combustíveis que a empresa portuguesa detém em Espanha, bem como as suas equipas comerciais.

O ETERNO ARGUMENTO DO BOM SENSO

Em Portugal uma decisão semelhante seria possível? Américo Oliveira Fragoso, advogado especialista em Direito do Trabalho da sociedade Vieira de Almeida (VdA), acredita que sim: “não vejo que não pudesse acontecer, se o trabalhador, comprovadamente, tivesse um comportamento abusivo.” Até porque, na prática, o que o Código do Trabalho nacional determina no que diz respeito a tempos de trabalho e pausas é que “as interrupções são admissíveis para satisfação de necessidades inadiáveis”.

O artigo 197º do Código do Trabalho é claro. “Considera-se tempo de trabalho qualquer período durante o qual o trabalhador exerce a atividade ou permanece adstrito à realização da prestação, bem como as interrupções e os intervalos previstos no número seguinte”, pode ler-se no documento, que enquadra como “intervalos previstos” as interrupções consideradas em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, em regulamento interno da empresa ou resultantes de necessidades da empresa, a interrupção ocasional do período de trabalho diário inerente à satisfação de necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador ou resultante de consentimento do empregador e todas as interrupções que decorram de motivos técnicos. Porém, admite Américo de Oliveira Fragoso, esta formulação abre caminho a algumas zonas cinzentas.

“Sabemos que uma ida à casa de banho ou uma pausa para alimentação é uma necessidade pessoal inadiável. Mas pode, naturalmente, questionar-se se beber um café ou fumar um cigarro se enquadram nesta categoria”, explica, admitindo que esta é uma discussão antiga, que se intensificou até com a recente proibição de fumar em recintos fechados, que obrigou as empresas a adotar os seus códigos internos.

O advogado da VdA salienta que, nestes casos, como em muitos, impera a regra do bom-senso da parte dos trabalhadores e também do empregador. “É razoável que um trabalhador possa fazer uma pausa para fumar por hora ou a cada hora e meia, mas se numa hora fumar cinco cigarros já é abusivo”, explica, acrescentando que, da mesma forma, “é pouco normal que em oito horas de trabalho um profissional gaste duas horas por dia em pausas para ir à casa de banho”.

Poucos casos semelhantes terão chegado aos tribunais nacionais, reconhece Américo de Oliveira Fragoso, acrescentando que, na maior parte dos casos, “estas questões são resolvidas com códigos de conduta internos, aprovados pelas empresas” e cujas regras são claras e objetivas para os profissionais. Mas para a advogada Carmo Sousa Machado, sócia e presidente da sociedade Abreu Advogados, “isso não significa que não haja abusos, porque os há, e muitos”.

Esta especialista em Direito do Trabalho também é perentória em afirmar que “uma decisão semelhante à alcançada em Espanha pode ser replicada em Portugal por qualquer empresa”. E acrescenta que, pese embora a existência de enquadramento específico para pausas em algumas áreas de atividade, o que a lei enquadra é o direito à pausa para satisfação de necessidades pessoais inadiáveis.

Contudo, a especialista realça que “as situações devem sempre ser avaliadas caso a caso”. Segundo Carmo Sousa Machado, “é preciso perceber, por exemplo, se a prática de sair para fumar ou beber café livremente e sem limite de saídas e entradas estabelecido está em vigor na empresa há muito tempo e que possa ser considerada como um direito adquirido pelos trabalhadores, ou se é uma situação a que a empresa fecha os olhos”. No primeiro caso, e provando-se que é um direito adquirido, explica, “seria mais difícil de alcançar uma decisão semelhante”. A especialista recorda que esta questão tem impacto profundo na produtividade das empresas e por várias vezes tem sido alvo de debate.

CÁTIA MATEUS - expresso