Fim de mestrados integrados promete pequena revolução nas faculdades: como o ensino superior português fica mais próximo do modelo americano

Milhares de estudantes portugueses vão ser apanhados a meio do curso pela reforma curricular que separa licenciatura e mestrado. As maiores faculdades de engenharia aproveitaram para abrir cursos a humanidades. Afinal de contas, um aluno tem razões para se preocupar perante a alteração de currículos?

E à data marcada mais de 100 mestrados integrados ficaram com os dias contados. Com o início novo ano letivo regressa a antiga fronteira entre licenciaturas e mestrados, que deverão funcionar como graus de ensino independentes. Perante a inevitabilidade da decisão tomada em decreto-lei proposto pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), as maiores faculdades optaram por reformular currículos, e abrir a possibilidade alunos de engenharia fazerem uma ou duas disciplinas lecionadas em cursos de Letras, Direito, Sociologia ou Psicologia – e vice-versa. As semelhanças com o ensino universitário americano são notórias, mas antes de alcançarem esse objetivo as diferentes faculdades terão de mostrar que têm mesmo capacidade para superar a turbulência que se avizinha com estudantes que têm cadeiras em atraso.

“Temos de ter cuidado. Haverá alunos para quem esta mudança é fácil, mas os alunos com cadeiras atrasadas podem ser obrigados a frequentar simultaneamente aulas de licenciatura e mestrado. E vamos ter cuidado com o facto de haver disciplinas que aparecem e outras que desaparecem [com a passagem dos mestrados integrados para cursos divididos entre licenciatura e mestrado]”, refere João Falcão e Cunha, diretor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP).

Nas maiores faculdades de Engenharia, o ano letivo de 2021-2022 foi aproveitado para expandir conhecimentos para lá da fronteira dos estereótipos atribuídos aos engenhocas ou aos geeks. Falcão e Cunha não esconde o entusiasmo, mas admite que a transição acarreta os seus riscos e que muitos professores da instituição que lidera “não concordam com as alterações” relacionadas com o fim dos mestrados integrados.

Há pelo menos três anos que o “tornado” curricular que agora vai descolar é conhecido. O decreto-lei 65/2018 pôs fim à larga maioria dos mestrados integrados que aglutinavam licenciatura e mestrado num único ciclo de ensino – com as exceções de Arquitetura e Urbanismo; Ciências Farmacêuticas; Medicina; Medicina Dentária; e Medicina Veterinária.

Com o novo formato, a licenciatura passa a exigir um total de 180 créditos académicos com a participação e o aproveitamento em diferentes disciplinas de licenciatura, e 120 créditos académicos relativos às matérias lecionadas em mestrado. É expectável que a licenciatura seja lecionada em três anos, enquanto o mestrado poderá demorar entre um e dois anos.

Nas maiores faculdades de Engenharia a alteração é vista com otimismo, mesmo se nalguns casos, o fim dos mestrados integrados possa ser encarado como uma emenda governamental às interpretações suscitadas pelo Processo de Bolonha, que levou à inclusão de mestrados nos quatro a cinco anos que, antes, eram necessários para uma licenciatura. “Dentro do Técnico, tínhamos vários mestrados integrados ao lado de licenciaturas que depois eram seguidas de mestrados… e não se percebia a lógica. Ao optar-se por este corte a meio entre o primeiro e o segundo ciclos de estudo, estamos a dar cumprimento ao Processo de Bolonha”, defende Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

O fim dos mestrados integrados não deixou de produzir eco na área sindical. Pedro Oliveira, professor universitário e membro do Conselho Nacional da Federação Nacional dos Professores (FENPROF), retoma receios e murmúrios que chegaram a circular nos últimos meses em associações de estudantes e lembra que a separação entre os dois ciclos de ensino também abre caminho à cobrança de mestrados com propinas especialmente elevadas pelas universidades.

 “Além disso, os estudantes vão ter maior facilidade em fazer a licenciatura nos politécnicos e transitar para as universidades para concluir o mestrado”, acrescenta Pedro Oliveira, prevendo uma perda de atratividade para os politécnicos e um agravamento do desequilíbrio geográfico da população estudantil.

Com o novo figurino ditado a partir do gabinete de Manuel Heitor, ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, passa a haver maior flexibilidade no que toca à escolha de especializações ou articulação de diferentes áreas de estudo. Os alunos passam a dispor de margem de manobra para combinar competências e moldar o currículo académico final. Mas também há o revés: o que garante que um licenciado em Bioengenharia com mestrado em Mecânica tem a mesma empregabilidade de um aluno que se limitou ao percurso mais convencional que prolonga no mestrado a licenciatura em Mecânica ou em Bioengenharia, sem combinar diferentes áreas de estudo?

As novas regras fazem recair sobre o aluno a responsabilidade pelo percurso profissional efetuado, mas isso não chegou para convencer a Ordem dos Engenheiros das virtudes da flexibilidade. Em maio de 2019, a entidade profissional criticou a aposta na separação de mestrado e licenciatura em detrimento do denominado “ciclo longo” de quatro ou cinco anos, que foi o convencionado para as antigas licenciaturas. “Os atuais primeiros ciclos (três anos) dos mestrados integrados são basicamente preenchidos por ciências de engenharia e não atribuem, por regra, competências profissionais reconhecidas”, referiu a Ordem dos Engenheiros em comunicado emitido de há dois anos.

A entidade profissional não deixou ainda de lembrar que, apesar de o percurso curricular ser definido por cada aluno, as universidades e o Governo são dispensados de responsabilidades nos casos em que as ordens não reconhecem diplomas para efeito de títulos profissionais. “O odioso fica do lado das ordens profissionais que, se reconhecerem a evidência do défice de qualificação, mais facilmente poderão ser acusadas de constituírem barreiras à entrada na profissão e não o facto de estarem a defender o interesse e a confiança pública”, refere a Ordem dos Engenheiros, quando questionada pelo Expresso.

O MCTES defende-se destas críticas e justifica o encerramento anunciado de mais de 100 mestrados integrados no país com um balanço negativo. “Passada mais de uma década da implementação efetiva do Processo de Bolonha em Portugal, o MCTES concluiu que a manutenção dos mestrados integrados em determinadas áreas disciplinares tinha contribuído para a não modernização das suas formações, métodos de ensino e estruturas curriculares”, refere o ministério.

MESTRADO INTEGRADO SÓ ATÉ 2026

Do mesmo modo que impõe a separação em dois ciclos curriculares entre licenciatura e mestrado a partir do ano letivo que arranca no final deste setembro, o MCTES recorda ainda que os alunos já inscritos vão poder concluir os mestrados integrados, caso não queiram ou não seja possível migrar para o novo formato curricular. Mas há uma condição a respeitar: os alunos terão de concluir o curso até ano letivo de 2025/2026.

“Há uma proteção que pretende garantir que têm a possibilidade de terminar os mestrados integrados até 2025/2026 e isso pode abrir alguma sobrecarga (para os docentes) devido ao aparecimento de novas disciplinas. Cabe à autonomia das universidades gerir este tipo de sobrecarga… nem todas as escolas seguem as mesmas opções”, descreve Paulo Eduardo Oliveira, diretor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC).

É entre os alunos que têm cadeiras em atraso que o cenário se pode revelar mais complexo. No Técnico, optou-se por migrar os alunos “apanhados” durante o curso pelo decreto-lei 65/2018 para os novos formatos curriculares, com a atribuição de créditos correspondentes às disciplinas já efetuadas. Mas os alunos que têm de fazer cadeiras em atraso que desaparecem nos novos mestrados têm de fazer as novas cadeiras em substituição. Rogério Colaço recorda que, mesmo entre disciplinas que substituem outras, há uma continuidade das matérias lecionadas, que mantém a identidade do curso e minimiza potenciais “cortes” entre quem se vê obrigado a fazer uma disciplina que substitui a que estava em atraso.

A FEUP seguiu o mesmo modelo do Técnico, e revela um número que ajuda a avaliar o desafio da transição: “Há alunos que vão ter de frequentar simultaneamente aulas de licenciatura e mestrado, devido às cadeiras em atraso. Na FEUP, estimamos que cerca de 50% dos alunos têm atualmente cadeiras em atraso”, explica Falcão e Cunha.

João Falcão e Cunha, diretor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto,admite que a integração de cadeiras de humanidade em cursos de engenharia vai exigirflexibilidade de horário e deslocações 

Aos processos de migração, junta-se o fator pandemia: devido às limitações de confinamentos, quarentenas ou baixas médicas, a denominada época especial de exames, que na maioria dos casos estava reservada a finalistas, foi aberta a todos os alunos para superar as contingências geradas pela covid-19. “Devido à pandemia, torna-se possível fazer várias cadeiras em atraso através de exame. O que pode tornar mais fácil a migração de alunos (para o novo formato curricular)”, explica Rui Guerreiro, presidente da Associação de Estudantes da FEUP.

Mesmo sem revelar receio, o dirigente da associação de estudantes da FEUP admite que este ano de transição possa destapar casos mais bicudos. “A FEUP garante a equivalência [no novo formato] de cadeiras que já foram feitas nos mestrados integrados, mas admito que haja casos em que os alunos possam ser obrigados a fazer novas cadeiras para substituição das antigas, que se encontravam em atraso”, responde.

OS NOVOS CURSOS MUTANTES

No Técnico, a mudança está agendada para o dia 27 de setembro, com o regresso às aulas de mais de 11.500 alunos de Engenharia. À alteração ditada pelo Governo, juntou-se a reformulação curricular que abarcou as propostas pela Comissão de Análise ao Modelo de Ensino e Práticas Pedagógicas, com destaque para duas novidades: a possibilidade de um aluno frequentar uma cadeira da licenciatura e outra durante o mestrado em faculdades da Universidade de Lisboa que não são de Engenharia; e ainda a possibilidade de frequentar três cadeiras de outro curso dentro do Técnico, já no período de mestrado, seguindo lógica similar à das universidades americanas, que integram pequenas especializações conhecidas como “minors”, a fim de fomentar a interdisciplinaridade.

“Fazer uma cadeira de Ética a sério (em cursos de Filosofia ou Direito) é obra. Pode ser tão difícil quanto fazer uma cadeira de cálculo diferencial no Técnico. Não tenho a certeza de que será mais fácil um aluno de Engenharia fazer uma cadeira de Ética que um aluno que não é de Engenharia vir fazer uma cadeira ao Técnico”, considera Rogério Colaço.

Além de abrir a possibilidade de alunos acederem a aulas de Escultura, Ética ou Direito empresarial noutras faculdades, o Técnico também vai abrir portas aos alunos que não são de Engenharia em cadeiras relacionadas com Inteligência Artificial, Robótica, Mobilidade e Cidades Inteligentes, Valorização e Restauro do Património, entre outras. “Não temos uma posição ideológica sobre o assunto. Se não for tão bom como pretendíamos, então corrigimos”, garante Rogério Colaço.

Na FEUP, acolher alunos de outras faculdades já não é novidade. João Falcão e Cunha recorda que, nos últimos anos, a FEUP tem recebido alunos externos em cadeiras de Programação, Logística, Conceção de Produtos. “A única restrição era a capacidade limitada das turmas [para integrar mais alunos no mesmo espaço]”, recorda.

O diretor da FEUP admite que “num caso ou noutro, houve problemas de adaptação ou desistências” de alunos vindo de fora da FEUP, mas também recorda que, geralmente, os alunos externos procuram cadeiras do quarto ou quinto anos letivos, “uma vez que, nos três primeiros anos, são exigidos mais conhecimentos de Matemática e Física”.

Para dar largas à mescla de conhecimentos, a FEUP arranca este ano letivo com parcerias com as faculdades de Economia, Psicologia e Ciências da Educação, Letras, e Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. “O campus da universidade está disperso pela cidade do Porto. Pode haver casos em que não será possível conciliar deslocações e horários das aulas”, refere o diretor da FEUP. Já falta pouco para a mudança se fazer sentir

13 SETEMBRO 2021 Expresso Hugo Séneca