ADSE Beneficiários pagam €638 milhões, mas mandam pouco

Sai dos bolsos dos funcionários públicos o dinheiro que paga a ADSE. O custo subiu e superou aautossustentabilidade, mas não trouxe autonomia

Imagine que 3,5% do seu rendimento bruto (salário ou pensão) lhe era descontado para acautelar o acesso a cuidados de saúde privados em caso de necessidade. Se for, ou tiver sido, trabalhador do Estado, o exercício torna-se fácil, já que, caso esteja inscrito na ADSE, lida com esta realidade todos os meses (incluindo na altura dos subsídios de férias e de Natal) — é o preço a pagar para ser um dos 1,3 milhões de beneficiários do subsistema de saúde público.

Desconto para a ADSE aumentou de forma significativa e o Orçamento do Estado deixou de contribuir para o subsistema de saúde público

Agora, depois de calcular o encargo anual para ter acesso a uma ampla rede privada hospitalar a preços controlados, graças a acordos de convenção, retenha o facto de que o excedente orçamental da ADSE soma mais de €770 milhões e que 91% do seu financiamento sai dos bolsos dos beneficiários, num total de €637,7 milhões em 2020. Some o facto de que é inegável que o subsistema de saúde dos trabalhadores do Estado supera qualquer melhor proposta no mercado dos seguros privados. A ADSE não impõe um limite de idade, não tem tetos máximos de despesa em tratamentos diferenciados, como acontece no cancro, e permite o acesso a custo zero dos filhos dos beneficiários (até ao limite dos 26 anos) e também acolhe os cônjuges sem rendimentos. Além disso, distingue-se pelo seu caráter solidário, em que quem tem maiores rendimentos contribui com mais dinheiro para o subsistema, acautelando o acesso igualitário dos associados com menor capacidade financeira

.Beneficiários querem ter a maioria no conselho diretivo de um instituto público com um excedente de €770 milhões, sobre o qual não têm uma palavra a dizer

Até aqui, deverá concluir que o saldo custo/benefício é positivo e que não seria mau trabalhar para o Estado e ter ADSE. Porém, no prato da balança pesam também uma série de pedras na engrenagem do subsistema. Está a abater-se sobre os beneficiários um manto de incerteza, e isso pode comprometer até a sustentabilidade deste regime. Até ao momento, o total de beneficiários que renunciaram à ADSE não é expressivo — 510 em 2020, que compara com o total de 735 renúncias no ano de 2019 e de cerca de 400 em 2016, 2017 e 2018. Porém, serão cada vez mais aqueles que se questionam se valerá a pena permanecer caso o desfecho do braço de ferro entre os maiores prestadores privados e a ADSE, por causa das novas tabelas para o regime convencionado (ver texto principal), acabe mesmo por reduzir o acesso aos cuidados de saúde que foram assegurados aos beneficiários até 31 de agosto.

DESEQUILÍBRIO DE PODERES

A ADSE é financiada pelos beneficiá­rios, ou seja, não vive de dinheiro do Orçamento do Estado. Mas o facto de o desconto ter aumentado até este nível, em que os trabalhadores do sector público pagam integralmente os cuidados de que usufruem, não foi acompanhado por uma maior intervenção por parte dos beneficiários. No conselho diretivo de três elementos, apenas um é indicado pelos representantes dos beneficiários, cabendo ao Governo nomear o membro que preside e o outro vogal. Nada acontece na ADSE sem o aval das tutelas — Ministérios da Modernização do Estado e da Administração Pública e das Finanças (cuja interferência, aliás, pesa mais nas decisões que são tomadas, como foi o caso das novas tabelas de preços ou a integração no subsistema dos funcionários com contratos individuais de trabalho). E nem o excedente orçamental é gerido e rentabilizado pela ADSE, embora o ministério liderado por João Leão beneficie destes largos milhões de euros para a redução contabilística do défice das contas públicas. Ou seja, a almofada existe, mas os beneficiários não lhe podem tocar.

Mudanças no processo de eleição dos representantes dos beneficiários é um passo no sentido do reforço do seu papel na gestão do organismo

Já por diversas vezes se colocou no horizonte da ADSE a transformação numa mútua — até a ministra da Administração Pública, Alexandra Leitão, chegou a falar sobre essa hipótese, que entretanto terá ficado na gaveta. Para o presidente do Conselho Geral e de Supervisão (CGS) da ADSE, João Proença, o problema não está na figura de instituto público, encontra-se, sim, ao nível da (falta de) autonomia da gestão. Sobre o mutua­lismo, lembra a má experiência no Montepio, exemplo que também tem sido dado pelo membro da direção da ADSE eleito pelos representantes dos beneficiários, Eugénio Rosa, para afastar tal hipótese. O presidente do CGS defende que este órgão não devia ser meramente consultivo e de acompanhamento. “Por exemplo, havendo acordo entre o conselho diretivo e o CGS, o Governo não deveria interferir”, sustenta.

Trabalhadores do Estado valorizam a ADSE, uma realidade que pode ser posta em causa com recusa dos grandes prestadores privados em continuarem a praticar alguns atos dentro do regime de convenções

A pedido da direção, este órgão fez recomendações sobre o regulamento eleitoral para eleger os respetivos representantes dos beneficiários. Entre as várias sugestões, o CGS aconselha a que “seja ajustado o calendário das várias fases do processo eleitoral”, já que os prazos atuais são “muito apertados”. Também é sugerido o aumento do número de mesas de voto, bem como mais divulgação da data do escrutínio, das listas candidatas e respetivos programas, a criação de novos cadernos eleitorais e a melhoria do voto eletrónico. A ADSE tem mais de 900 mil beneficiários titulares com direito de voto, espalhados por todo o país, cujo papel seria reforçado com uma maior participação na eleição dos seus representantes.

Igualmente a Associação nacional de beneficiários da ADSE 30 de Julho pede mudanças no processo eleitoral e defende que o conselho diretivo devia ter uma maioria de representantes dos beneficiários. Para a associação não faz sentido que quem sustenta este subsistema de saúde público tenha pouca importância na tomada de decisões.

Ana Sofia Santos e Cátia Mateus - Semanário Expresso - 1/10/21