A partir de 1 de outubro apenas serão realizadas cirurgias, exames de gastro e sessões de fisioterapia aos doentes que assumirem a despesa. Unidades de todo o país já estão a contactar os 250 beneficiários diários. Em alguns casos, será aceite o pagamento em prestações

Por dia, 40 a 50 doentes da ADSE são operados na rede privada. Protesto pode levar utentes ao SNS e a um agravamento das listas de espera

Está suspenso o acesso facilitado aos hospitais privados por parte dos 1,2 milhões de titulares da ADSE, o subsistema de saúde dos funcionários do Estado. Do próximo mês em diante, vários serviços vão passar a ser prestados somente a pronto pagamento.

Todas as cirurgias, sessões de fisioterapia e exames de gastrenterologia, como a colonoscopia, deixam de fazer parte dos atos médicos incluídos no acordo entre a ADSE e o sector privado. Por outras palavras, só terão atendimento os beneficiários que assumirem a totalidade da despesa com as intervenções.

A nova regra vai afetar os 250 utentes que, em média, recebem diariamente cuidados cirúrgicos ou de reabilitação ou fazem exames de gastro nas unidades da rede privada. Vários prestadores de todo o país estão já a contactar os beneficiários com marcações para saber se querem cancelá-las ou mantê-las, neste caso suportando financeiramente a despesa. Em alguns casos, sobretudo cirúrgicos, as faturas são muito elevadas e há unidades que vão facilitar o pagamento, permitindo prestações.

PRIVADOS FAZEM UM ALERTA: “A SITUAÇÃO É DRAMÁTICA”. ADSE NÃO DÁ RESPOSTA AOS PEDIDOS PARA NEGOCIAR NOVAS REGRAS

A reviravolta nas convenções com a ADSE não tem data para terminar e é a resposta da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP) às recentes alterações unilaterais ao acordo. Desde o início do ano, a negociação soma falta de entendimento e agora resta a subtração: “Perdem os beneficiários da ADSE, perde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) — com listas de espera e que poderá ter de receber também estes doentes — e perdem os prestadores privados”, garante Óscar Gaspar, presidente da APHP.

“A situação é dramática. Temos vindo a alertar para os problemas e insistentemente solicitámos uma reunião para discutir as regras a implementar em outubro sem sucesso”, adianta o responsável. “A ADSE continua [com a nova direção] com ar majestático”, critica o antigo secretário de Estado da Saúde.

O boicote dos privados — “não dispostos a arriscar porque as decisões da ADSE oscilam de dia para a dia”, diz a APHP — foi comunicado à ADSE no início da semana, também sem reação, e o próprio ministro da Saúde está a par. Desta vez, estão em causa alterações relativas a autorizações prévias e a faturação de próteses.

À espera do sistema prometido

“A ADSE quer avançar a 1 de outubro com procedimentos de autorização prévia para medicina física e de reabilitação, exames em gastrenterologia e cirurgias. A ideia era que setembro funcionaria como teste, mas o sistema ainda não existe, apesar de ter sido dito que os pedidos teriam de funcionar com muita antecedência, e a ADSE não se comprometeu com um prazo de resposta. É preciso que, em termos operacionais, esteja definido como se faz”, explica Óscar Gaspar. “Não temos nada a opor às autorizações prévias, existem com os seguros, mas nada disto é possível de fazer a duas semanas de entrar em vigor.”

O outro ‘grão na engrenagem’ é a cobrança de próteses. “A ADSE quer obrigar-nos a enviar em sete dias a fatura do ato realizado, incluindo o código de barras da prótese. O prestador não tem a fatura de uma prótese, recebe uma fatura de todas as próteses vendidas ao hospital, e o código de barras tem de ser utilizado no controlo interno”, esclarece Óscar Gaspar. “Ainda que a medida fosse possível a partir de outubro, não concordamos. A relação entre o hospital e a indústria é comercial e não deve ser partilhada. Qualquer dia, a ADSE vai perguntar quanto pagamos ao médico”, ironiza o antigo governante socialista.

É CADA VEZ MAIORO NÚMERO DE ESPECIALISTAS QUE RECUSAM TRABALHAR PELOS VALORES QUE A ADSE PAGA. DERMATOLOGIA É UM EXEMPLO

O argumento da ADSE tem sido o combate à variabilidade de preços, alguns excessivos. Os privados admitem que a preocupação é legítima e defendem uma solução semelhante à que existe desde abril para as lentes intraoculares: baixar preços e estabelecer tetos.

Mas a convenção tem mais problemas, que os privados querem agora resolver a todo o custo. Exigem a Tabela da Ordem dos Médicos para definir os procedimentos que fazem parte de cada intervenção, e que a ADSE já utiliza para reembolsar os utentes quando vão a médicos sem acordo. “A tabela tem mais de uma década e deve ser substituída porque são os médicos que sabem quais são os atos. Em março, a ADSE reconheceu que devia evoluir e está tudo na mesma”, critica Óscar Gaspar.

É igualmente pedido o pagamento em 60 dias. “Há dois anos, a ADSE enviou unilateralmente uma notificação dizendo que pagaria em 120 dias e não em 90 como pagava. Contudo, a lei geral diz que o prazo não deve ser superior a 60 dias. Ao contrário do SNS, a ADSE tem tesouraria — 530 milhões de euros de saldo e 180 milhões de euros que diz que o Estado lhe deve”, afirma o antigo secretário de Estado da Saúde.

Junta-se ainda às exigências a cobrança de atos que a ADSE recusa pagar, como a chamada de um especialista à Urgência para ver um doente, a utilização do bloco operatório ou procedimentos invasivos como a broncoscopia (ver a laringe e as vias aéreas). A rede privada critica também os 13 anos sem revisão de preços. Por uma consulta de especialidade, o prestador recebe €19 da ADSE e €3,99 do utente, mas €35 de uma seguradora.

Convenção com a ADSE vale €460 milhões

Os médicos ganham menos com o subsistema e muitos recusam: “Há hospitais que não têm nenhum dermatologista disponível ou algumas cirurgias”, alerta o presidente da APHP. Não há muito tempo, responsáveis do Colégio de Gastrenterologia afirmaram que os preços propostos pela ADSE eram obscenos. Mesmo assim, os privados não fecham a porta.

PONTOS DA DISCÓRDIA

AUTORIZAÇÕES PRÉVIAS A ADSE quer um pedido antecipado para cirurgias, exames de gastro e fisioterapia, já a partir do próximo mês, mas ainda não existe um sistema nem um prazo definido para dar resposta aos hospitais.

PRÓTESES Vai ser exigido aos prestadores o envio de fatura até sete dias após a intervenção, incluindo o código de barras da prótese. Os privados garantem que só há faturação para o total de dispositivos comprados, por exemplo, num mês e que o código de barras é necessário para procedimentos de controlo interno.

TABELA DE ATOS As unidades privadas reclamam a tabela da Ordem dos Médicos (OM) para definir os atos incluídos em cada procedimento, contudo a ADSE mantém uma versão desatualizada, mas apenas para este sector. No regime livre, reembolsa os seus beneficiários mediante os atos na tabela da OM.

PAGAMENTOS Os 120 dias que a ADSE demora a pagar devem ser reduzidos para 60, como diz a lei geral, exigem os hospitais e as clínicas privadas. Os responsáveis pelo sector garantem que o subsistema de saúde dos funcionários do Estado tem a tesouraria necessária para conseguir fazê-lo. É ainda reclamado o pagamento de atos realizados e que a ADSE nunca paga, como alguns exames invasivos, a utilização do bloco operatório ou a chamada de um especialista à Urgência para observar um doente.

A verdade é que a ADSE garante uma parte importante da faturação, que o sector não quer perder. O valor já foi um terço, mas agora é menor. Segundo os representantes da rede, o regime convencionado vale cerca de 460 milhões de euros no total, entre 10% a 20% da atividade dos privados. As consultas de especialidade, sobretudo de medicina familiar, ortopedia e ginecologia são os cuidados mais procurados pelos beneficiários.

“O volume da ADSE até há pouco tempo era importante, mas não estamos disponíveis para fazer a qualquer preço, até porque já fazemos mais por menos dinheiro”, garante Óscar Gaspar. Os dados publicados, de 2015 e 2016, mostram que as consultas médicas aumentaram de 2,5 para 2,8 milhões, as cirurgias com colocação de próteses duplicaram (10.962 para 21.963), as sessões de reabilitação passaram de 67 mil para 73 mil e as urgências de 184 mil para 210 mil episódios.

Os privados sublinham que, além de prestarem mais cuidados, procuraram reduzir os encargos para a ADSE. Referem a criação de conjuntos de atos cirúrgicos em vez da cobrança unitária, a redução de 17% nos preços em oncologia e o próprio acordo ao nível das lentes, uma rubrica que o subsistema identificou como muito ‘gastadora’. No entanto, a ADSE vai gastar mais com a assistência, é inevitável face ao envelhecimento da população e ao aumento da carga de doença.

“Pedimos um estudo a uma consultora, que estará pronto em poucas semanas, e a abertura a novos beneficiários foi identificada como uma questão fulcral para a ADSE” (ver texto ao lado), revela Óscar Gaspar. Reconhecendo que não deve opinar, o antigo governante e agora representante do sector privado de saúde não se escusa a dar um conselho: “A ADSE tem 38% de pessoas acima dos 60 anos, uma percentagem que nas seguradoras [rentáveis] fica nos 18%. Portanto, ou opta pelo alisamento — só conseguido com uma menor oferta de cuidados — ou por novas formas de financiamento, no caso abrindo a novos beneficiários.”

ADSE está a estudar dificuldades dos prestadores

A presidente Sofia Portela diz que estão a ser analisadas as críticas dos privados perante as novas regras de faturação

A ADSE está a estudar “as dificuldades” dos prestadores privados de saúde com as novas regras de faturação, que têm vindo a ser mudadas durante o verão e que devem vigorar a partir de outubro, avança ao Expresso a presidente do conselho diretivo, Sofia Portela . O Expresso soube ainda que está em cima da mesa a hipótese de haver um período experimental até 1 de novembro.

Há mais uma exigência dos privados que a ADSE está a analisar e que se prende com a hipótese de o subsistema vir a pagar atos clínicos que atualmente não estão assegurados. “Essa matéria está a ser estudada”, diz Sofia Portela.

FINANCIAMENTO

3,5%

do vencimento é o valor que os funcionários públicos pagam pela ADSE. Até 2010, vigorava uma taxa de 1,5% e havia financiamento público; depois, entre 2010 e 2013, acabaram as transferências do Estado e o desconto passou a ser 2,25%. Em janeiro de 2014 subiu 2,5% e quatro meses depois fixou-se nos 3,5%

1,2

milhões são os beneficiários da ADSE. A receita deste subsistema ascendeu a €545 milhões, em 2016, segundo dados do Tribunal de Contas

Porém, em relação a outras duas pretensões, a ADSE mantém-se inflexível. Não é aberta a porta ao pagamento das faturas a 60 dias (contra os atuais 120): “A ADSE cumpre os prazos dos contratos firmados com os prestadores convencionados. Não se entende que a APHP (Associação Portuguesa de Hospitalização Privada) queira pôr em causa os contratos assinados”. Também a aplicação da Tabela da Ordem dos Médicos ao regime convencionado não colhe simpatia. “A ADSE tem, desde sempre, as suas próprias tabelas de preços e regras, pelo que não se percebe a lógica subjacente a esta exigência”, afirma Portela.

A polémica entronca na verdadeira questão de fundo da ADSE: a sua sustentabilidade. O presidente do Conselho Geral e de Supervisão (CGS) da ADSE, João Proença, garante que o sistema é sustentável, mas defende que é preciso tomar medidas para garantir que assim se mantenha. Adianta que o saldo acumulado das contas da ADSE soma €492 milhões (excedentes registados entre 2014 e 2017) e que, por isso, o CGS propôs ao Governo que o valor do desconto feito pelos funcionários públicos (3,5% do vencimento) fosse reduzido. Além disso, sublinha a necessidade de reforço do combate à fraude, ao consumo excessivo por parte dos beneficiários e à prescrição desnecessária de exames, por exemplo. Para isso, há que aumentar o quadro de pessoal que se dedica a este controlo, frisa.

O CGS defende uma abertura “controlada” do subsistema que permita a entrada de beneficiários que estiveram ligados à Administração Pública e que saíram deste universo, como os trabalhadores dos hospitais EPE e de algumas empresas municipais. Antes de tomar uma decisão a este respeito, a tutela exige que seja feito um estudo para avaliar o impacto da entrada de cerca de 64 mil potenciais beneficiários. Além dos funcionários de empresas públicas com contrato individual de trabalho, estão também incluídos os trabalhadores que deixaram passar o prazo para se inscreverem, bem como os que renunciaram e que podem querer regressar. “O grande problema da sustentabilidade da ADSE tem que ver com o envelhecimento dos beneficiários, já que o Estado pouco contrata e não há renovação. São necessários jovens para equilibrar”, diz Proença.

Sobre os recuos e avanços em torno desta matéria, Sofia Portela também atesta a sustentabilidade da ADSE, pelo menos, durante os próximos dois anos. “O alargamento do universo de beneficiários não é imprescindível para a manutenção do equilíbrio financeiro da ADSE até 2020, como consta do Plano Plurianual 2018-2020 que se encontra em apreciação no CGS. As previsões apontam para que a ADSE venha a ter resultados líquidos positivos neste período.”

Manutenção do statu quo?

Pedro Pita Barros, economista que se especializou no sector da Saúde e que presidiu à Comissão de Reforma do Modelo de Assistência na Doença aos Servidores do Estado, considera uma inevitabilidade a tensão entre a ADSE e os prestadores privados. A entrada da troika no país resultou não só no agravamento do encargo dos trabalhadores com este ‘seguro de saúde público’ como tornou a ADSE mais “dura” a lidar com os prestadores privados, “que não estavam habituados”.

“A ADSE foi crescendo e não havia grande sistematização nos preços pagos aos prestadores. Entretanto, surge uma nova realidade e as equipas de gestão tornam-se mais exigentes não só com os preços, mas também com os próprios prestadores com quem têm acordo”, menciona o professor da Nova Business School and Economics, frisando que o facto de passar a haver “negociação foi uma novidade”.

Na sua opinião, abrir a ADSE e permitir a entrada de ‘contribuintes’ fora do universo de trabalhadores do Estado iria subverter a lógica atual deste subsistema, porque a ADSE “faz sentido no âmbito das relações laborais do Estado com os seus trabalhadores”. “Se retirarmos a ADSE desta lógica, esta passaria a ser igual a outro qualquer sistema mutualista ou seguro de saúde”, mas aí a ADSE teria de sair da esfera pública e caminhar no sentido de se tornar um regime mutualista, com autonomia. O economista desafia a olhar, ao contrário, para a questão de um possível fim da ADSE. Ou seja, fazendo a pergunta: “Este sistema seria criado caso não existisse? Aí saberemos se a preocupação com a ADSE se trata, ou não, da manutenção de uma situação histórica.” Ana Sofia Santos

Especialistas hospitalares vão trabalhar na rua

Concentração de cuidados para casos agudos já não serve. Peritos defendem clínicas na comunidade para doentes crónicos e mais idosos

É um diagnóstico comum aos países desenvolvidos: as grandes estruturas hospitalares estão ultrapassadas. Os doentes agudos que beneficiaram da concentração dos serviços estão a envelhecer, a sofrer de doenças crónicas e a precisar de cuidados na comunidade ou em casa.

Não há outro remédio, perante o envelhecimento da população, os grandes hospitais terão de dividir-se em várias clínicas. A mudança já está pensada e vai ser discutida em Lisboa durante a próxima semana por dezenas de administradores hospitalares europeus.

“Como estão desenhados, os hospitais não prestam bons cuidados. É preciso desenvolver serviços de ambulatório em articulação com outros serviços de saúde e sobretudo com o sector social”, afirma Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, que promove o encontro. “Este modelo não serve. O hospital num edifício tem de ser disperso pela comunidade. A oferta piramidal tem de ser matricial, em que todos colaboram mais em casa do doente”, diz.

A tecnologia vai ajudar. “Os cuidados estarão centrados nas pessoas e não na maquinaria pesada. Teremos menos hospitais centrais, que serão mais especializados, não é possível prestar todos os cuidados em todo o lado, e mais unidades difundidas na comunidade. Deixamos de falar num edifício e passamos a falar em profissionais do hospital, que prestam cuidados em vários pontos, por exemplo nos centros de saúde.”

O antigo elemento da Administração Central do Sistema de Saúde defende que “o sistema de saúde tem de se adaptar às rotinas das pessoas, oferecendo serviços de qualidade nos horários adequados, não podemos ter centros de saúde que obrigam as pessoas a faltarem ao trabalho ou a levar as crianças só depois das 22 horas”.

Com um novo papel para o sector hospitalar, surgirão novos profissionais. “Existe uma agenda para a profissionalização dos administradores hospitalares e passa pelas competências para o gestor dos novos hospitais: liderança, mediação de conflitos, gestão de recursos humanos...”, explica Alexandre Lourenço. Só com estes conhecimentos se conseguirá fazer a “alteração filosófica” na base do modelo: pensar por doente, receber por doente.

“O papel dos hospitais tem de ser redefinido tendo em conta a saúde da comunidade, e o financiamento deve ser feito de acordo com os resultados obtidos.” E não chega que se mantenham vivos. “As unidades têm de ter dados da experiência do doente, qualidade de vida, se a passagem pelo hospital foi boa...” Por cá, não está tudo por fazer mas o caminho é longo.

“O pagamento por doente tratado iniciou-se em 2012, por exemplo, em oncologia. Numa reunião, perguntei aos médicos quantos doentes tinham tratado e só sabiam o número de tratamentos, de cirurgias... algo está mal”, alerta. Outra mudança necessária é a ligação com a família. O hospital tem de se preocupar com a reabilitação e trabalhar com os familiares desde o momento zero.

Vera Lúcia Arreigoso - Expresso