Dirigente que fiscaliza o fisco está em substituição há três anos
Inspector de Finanças não renovou comissão de serviço a director, mas de seguida colocou-o duas vezes em substituição no cargo, ultrapassando prazos. TdC já aplicou multa a uma autarca por ilegalidade um caso destes.
A Inspecção-geral de Finanças (IGF), o principal serviço de auditoria na administração pública, tem um inspector director em regime de substituição há mais de três anos, apesar de esta modalidade existir para situações excepcionais e transitórias, delimitadas no tempo pela lei. O caso dura desde 2015 e passa-se numa área nuclear: o controlo da administração fiscal, domínio central da fiscalização do Estado português.
Em causa estão duas nomeações consecutivas que, somadas, colocam o mesmo funcionário público em regime de substituição há mais de mil dias (mais de 700 dias úteis).
A decisão é da responsabilidade do inspector-geral de Finanças, Vítor Braz, que, confrontado, alega que o PÚBLICO está a dar voz a “denúncias caluniosas”.
A história começa em 2015, quando o inspector-geral decide não renovar uma comissão de serviço ao inspector de Finanças director Acácio Carvalhal Costa, há anos ligado ao controlo da máquina tributária e à prevenção da fraude. A seguir, nomeia-o duas vezes, de forma ininterrupta, em regime de substituição (2015 e 2017). Num caso e noutro, manteve o funcionário no cargo muito para além do período transitório, porque ele cessara ao fim de 90 dias (na primeira nomeação, o concurso que Vítor Braz vai alegar ter sido desenhado para esse lugar foi aberto quando o prazo já tinha passado há longos meses; na segunda, não se conhece existir concurso aberto).
Na administração pública há pelo menos um precedente em que o Tribunal de Contas condenou em 2014 um servidor público — uma autarca de Alpiarça — a pagar uma multa na ordem dos dois mil euros por ter nomeado e mantido uma funcionária em regime de substituição para lá do prazo legal, sem abrir concurso. Uma “situação de ilegalidade” que deu lugar a despesas ilegais.
O caso na Inspecção-geral de Finanças ganha importância tendo em conta que a IGF é a entidade de topo a quem cabe fiscalizar a legalidade financeira em centenas de serviços, autarquias, empresas públicas e fundos europeus. E a quem cabe agir se encontrar irregularidades, incluindo na gestão dos recursos humanos.
O primeiro despacho
Para perceber os passos dados na IGF é preciso recuar a Novembro de 2015. Vítor Braz era desde Janeiro inspector-geral e, por inerência, conselheiro do Conselho de Prevenção da Corrupção. Acácio Carvalhal Costa, que fora seu opositor no concurso da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (Cresap), era inspector de Finanças director, com responsabilidades no controlo dos serviços do fisco e dos sistemas de combate à fraude e evasão tributárias.
A sua comissão de serviço estava a chegar ao fim. Vítor Braz comunica que não lhe renovará o lugar. Manifesta a intenção de abrir um concurso e, até ser escolhido um novo director, decide nomear Carvalhal Costa em regime de substituição, tal como a lei permite. Mas os meses foram passando. E passaria mais de um ano para que Vítor Braz decidisse, num despacho assinado a 10 de Janeiro de 2017, abrir um concurso: o concurso que mais tarde invocará ser aquele que lançara para substituir o inspector.
Apesar de a lei prever que uma substituição cessa “passados 90 dias sobre a data da vacatura do lugar”, excepto quando está em curso “o procedimento tendente à designação de novo titular”, o concurso que Vítor Braz diz ter aberto para o lugar de Carvalhal Costa só aconteceu mais de 400 dias depois (cerca de 300 dias úteis).
O concurso, porém, não faz referência ao domínio tributário — a área pela qual o inspector director era responsável —, nem exigia essa experiência aos concorrentes, antes a pedia no controlo da despesa pública. O que o aviso diz é que ele se destinava ao “controlo dos sectores público-administrativo e empresarial, em especial, do controlo de serviços, da execução orçamental e da despesa pública”. A descrição leva Vítor Braz a justificar, em resposta ao PÚBLICO, que a administração tributária se insere “no sector público administrativo e [que] a execução orçamental abrange todas as receitas e despesas públicas”. E afirma que não tem de existir “qualquer relação” entre os cargos colocados a concurso e os sete centros de competência da IGF, um dos quais é o do controlo tributário.
Não se sabe se Acácio Carvalhal Costa, ao ver o aviso desse concurso, o interpretou como sendo para o seu lugar, isto é, se fez a leitura que Vítor Braz agora apresenta; também não se sabe se concorreu — algo que nem o inspector-geral, nem o inspector director esclareceram.
O dia seguinte
Entretanto, o concurso chega ao fim. Vítor Braz escolhe Carla Reis Santos, que também já era directora em regime de substituição, tal como Carvalhal Costa, mas, até aí, sem responsabilidades no controlo tributário. A 17 de Novembro, o dirigente máximo da IGF assina o despacho de nomeação e aponta o arranque das funções em comissão de serviço para 1 de Dezembro.
Passará um mês desde esse despacho para Vítor Braz ligar a comissão de serviço de Reis Santos (até aí directora em regime substituição) ao concurso para o cargo de Carvalhal Costa. Num novo despacho — com data de 20 de Dezembro de 2017 e publicado em Diário da República a 11 de Janeiro de 2018 — invoca a nomeação de Carla Santos para fazer cessar o primeiro regime de substituição de Carvalhal Costa. Assina o despacho a 20 de Dezembro e remete o fim dessa substituição para o dia 30 de Novembro, a véspera da entrada em funções da nova directora.
Passarão mais uns dias, com o Natal a intervalar as semanas. E a 29 de Dezembro há um novo despacho. Aí, nomeia o funcionário público que acabara de fazer cessar de funções novamente em regime de substituição. O resultado é este: Carvalhal Costa, que deixara de ser inspector de finanças director em regime de substituição a 30 de Novembro, continua a ser inspector de finanças director em regime de substituição a 1 de Dezembro. É esta linha do tempo que perfaz os três anos, de Novembro de 2015 até ao momento.
Para o justificar, Vítor Braz invoca no despacho vários argumentos, os mesmos que agora repete ao PÚBLICO. Além de sustentar ser preciso executar o plano de actividades de 2018 e de a IGF ter atribuições mais alargadas, afirma que a IGF tem lugares vagos para inspectores directores. E acrescenta o seguinte argumento: a “oportunidade em incrementar a prevenção da fraude e corrupção, enquanto eixo estratégico de actuação da IGF, [com] o conhecimento e experiência profissionais exigidas”.
Mas Acácio Carvalhal Costa já estava alocado nos anos anteriores aos projectos destinados a “contribuir para a eficácia do combate à fraude e evasão fiscais e aduaneiras” e a “contribuir para a eficácia dos sistemas tributários e da gestão” do fisco. E já em 2011 representara a IGF na elaboração do “Guião de Boas Práticas para a Prevenção e o Combate à Corrupção na Administração Pública”, com os organismos de controlo interno dos outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Em 2018, Carvalhal Costa continuou a ter em mãos o controlo tributário, assim como o das sociedades gestoras de participações sociais (SGPS). Vítor Braz acrescentou duas responsabilidades: assegurar o tratamento e encaminhamento de denúncias (muitas relacionadas com a área tributária) e exercer funções relacionadas com inquéritos e diligências externas na administração local (com mais quatro directores).
As funções partilhadas
O inspector apenas passou a partilhar com a directora Carla Reis Santos as funções de controlo dos sistemas tributários e da gestão do fisco. Foi, porém, com a justificação de ter escolhido alguém (Carla Reis Santos) para substituir Acácio Carvalhal Costa que Vítor Braz lhe cessou a primeira nomeação em regime de substituição; e foi com a necessidade de “incrementar” o combate à corrupção que Braz justificou a nova nomeação em substituição.
Vítor Braz também não abriu concurso durante os 90 dias. Os únicos lançados em 2018 foram para director na área do controlo da administração local (e apenas em Julho) e para a direcção de serviços administrativos.
Depois de questionar individualmente por email os dois directores, o PÚBLICO recebeu uma resposta da IGF — não assinada — na qual se garante que Carla Reis Santos tem em mãos uma “multiplicidade de projectos, que incluem a área tributária, alguns de responsabilidade partilhada com o inspector de finanças director em substituição”.
Confrontado, o inspector-geral justifica que as “novas competências e atribuições da IGF exigem uma gestão dinâmica e flexível” dos projectos e dos responsáveis. Não contestou o facto de Carvalhal Costa estar há três anos em substituição.
Foi durante o primeiro momento em substituição que a IGF realizou uma auditoria ao fisco que mereceu críticas na equipa de Mário Centeno, quando o relatório sobre o “apagão” de dados relativos a 10.000 milhões de euros de transferências para offshores fez o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Fernando Rocha Andrade afirmar que o documento deixara por esclarecer “aspectos relevantes para a descoberta da verdade”.
Antes de apresentar os seus argumentos, Vítor Braz fez uma breve observação: afirmou que o PÚBLICO — e o jornalista que lhe fez as perguntas — está a dar “destaque a denúncias caluniosas contra dirigentes da IGF”, algo que, afirma, está a ser apreciado pela Procuradoria-Geral da República. E lamentou-se pela “insistência” no assunto, sobre o qual fora questionado em 2017, antes de decidir a segunda nomeação de Carvalhal Costa.
O caso da IGF não é único. Na administração tributária também há um alto quadro que está em regime de substituição desde 2015. Trata-se do director da maior Direcção de Finanças do país, a de Lisboa. Neste caso, o Governo de António Costa só abriu o concurso em Janeiro de 2018, depois de ultrapassar os 90 dias em que a nomeação cessara; entretanto continua sem escolher um dos finalistas, apesar de já ter passado o prazo legal para o fazer.
Pedro Crisóstomo - 8 de Janeiro de 2019, Público