A utilidade do vírus no ensino superior

As escolas, desprovidas do papel financiador do Estado, ficarão à mercê dos interesses das empresas que as orbitam. Interesses que dificilmente coincidirão com os da sociedade no seu todo.

O actual ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) iniciou, em Maio de 2020, uma campanha à qual deu o título “Skills 4 pós-Covid–Competências para o futuro”. Não é credível que tenha actuado sob o efeito de uma inefável aversão à língua portuguesa ou por achar que assim, com um título meio português meio inglês, conseguia comprar uma dose de elevação internacionalista para o seu projecto. Terá a campanha sido suscitada pela pandemia ou haverá aqui um equívoco?

Para o MCTES a campanha visa “acelerar a modernização do ensino superior e torná-lo mais adaptado às necessidades da nossa sociedade”, um “ajustamento” a fazer sempre “em estreita colaboração com o mercado de emprego e empregadores” e ambicionando “aprofundar as competências das novas gerações”. Porque “um dos objectivos-chave do ensino superior é preparar os estudantes para uma carreira profissional produtiva e recompensadora”.

O que se quer, diz o ministro, é iniciar um “debate dentro das instituições de ensino superior e investigação” para identificar as leis que são necessárias mudar de modo a “provocar essas alterações inovadoras” tão necessárias para corrigir o nefasto desajustamento da academia em relação ao mundo real (o antigo fantasma das torres de marfim e do imobilismo).

Mas o debate tem de ser rápido para haver leis novas em Setembro-Outubro. É a conhecida urgência legislativa estival ou, como dizia um dos actores da campanha: “As resistências à mudança estão mais baixas e o momento deve ser aproveitado.”

O ministro e os seus convidados desenrolaram um sem fim de ideias para o “novo normal” do Ensino Superior e Investigação. Quem escutar as gravações das sessões da campanha consegue entender o projecto: aumentar o número de alunos estrangeiros nas escolas portuguesas; encurtar a duração dos cursos nos politécnicos e universidades; atrair para o ensino superior alunos com idades ou formações escolares diversas das habituais; investir quase exclusivamente nas áreas da “digitalização” da vida; retrair o financiamento do Estado no ensino e convidar mecenas e patrocinadores a ocupar o seu lugar e a determinar o que merece ser ensinado e investigado. Os mecenas também poderão leccionar parte dos novos cursos e até se propõe atribuir créditos escolares a actividades de voluntariado dos alunos.

Também se propõe reduzir as horas de aulas dos cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento em 20 a 35%; substituir aulas pelo visionamento de vídeo-sessões gravadas; atenuar o poder de fiscalização da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) e Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES); montar ligas de universidades e politécnicos transfronteiras para fins de contratação de pessoal com estatutos laborais difusos. Sucintamente, um ensino superior mais aligeirado, apressado, volúvel e embaratecido. Mais “dinâmico” e liberalizado.

O MCTES convidou os dirigentes máximos dos politécnicos e universidades a apresentarem as suas listas de desejos de alterações legislativas para conseguirem encarar o “novo normal” de mãos livres. Reitores e presidentes apressaram-se a enviar as suas listas pessoais em nome das instituições que representam.

A concretizar-se, o “novo normal” do MCTES será uma transformação redutora do Ensino Superior e Investigação a uma roda de instituições dedicadas à formação profissional para responder às necessidades momentâneas de mão-de-obra das empresas que conseguirem posicionar-se como “potenciais empregadores”. Serão escolas que, primordialmente, servirão para dotar os seus “aprendizes” com as habilidades que os transformam instantaneamente em trabalhadores atractivos. Só estas. A formação profissional especializada pode, assim, deixar de ser um ónus para os empregadores. A investigação científica tenderá a reduzir-se à investigação aplicada, maioritariamente de cariz tecnológico, para o desenvolvimento de novos produtos comerciais.

Esta ideia batida de que a formação profissional e a educação podem, por si, mudar tudo é ilusória. Certamente que a educação pode muito, mas não pode tudo. A economia depende das capacidades das pessoas, mas depende sobretudo do modelo de sociedade, da justiça social, de uma distribuição justa de rendimentos, da igualdade de oportunidades e de uma educação no seu sentido mais profundo, que crie sujeitos activos e críticos.

As escolas, desprovidas do papel financiador do Estado, ficarão à mercê dos interesses das empresas que as orbitam. Interesses que dificilmente coincidirão com os da sociedade no seu todo e provavelmente não terão um horizonte de médio ou longo prazo. Não é difícil antever o que se reserva para a liberdade académica e de investigação, ou para a missão de formação integral dos indivíduos neste “novo normal”. O ensino superior deixará de ser um bem público.

A suprema ironia encontra-se no facto de a maioria das sugestões que o MCTES agora apresenta para o “novo normal pós-covid” poderem ser lidas em documentos antigos, anteriores à pandemia. Documentos que o próprio MCTES conhecia ou promoveu. Textos como o dossier da OCDE sobre a “análise profunda da relevância do ensino superior e dos seus resultados para o mercado de trabalho” (2017) ou os estudos da Ernest & Young - Augusto Mateus SA (2019, 2020) sobre o “capital humano para satisfazer as tendências de evolução da procura empresarial”, encomendados pelo MCTES/DGES, já traziam o receituário que o MCTES agora declama.

A pressa é inimiga da perfeição. Mas é amiga da tomada de decisões oligárquicas com ares de democráticas e debatidas.

5 de Outubro de 2020, Público | OPINIÃO