Governo ajusta regras do teletrabalho até ao fim do mês

Diploma actual dispensa acordo entre trabalhador e empresa em relação ao teletrabalho, mas não é certo que assim seja em Junho. Governo vai revisitar legislação. Especialistas explicam o que deve ficar acautelado por escrito.

António Costa deu como certo que a partir de 1 de Junho o teletrabalho se regerá pelas regras habituais — o que obriga à existência de acordo entre o trabalhador e a empresa para se aplicar essa modalidade —, e em São Bento admite-se olhar para a legislação até ao fim deste mês, porque, neste momento, a norma em vigor é em sentido contrário ao que foi anunciado para Junho.

Até 31 de Maio, o teletrabalho é obrigatório sempre que as funções desempenhadas por um trabalhador o permitamPara o período seguinte, o plano de desconfinamento do executivo abre a porta a que as empresas adoptem modalidades de teletrabalho: mantendo-o ou intercalando alguns dias/semanas de teletrabalho com a presença física nos edifícios das empresas, através de escalas e horários adaptados (numa espécie de “teletrabalho parcial”).

Quando na passada sexta-feira Costa foi questionado se, a partir de 1 de Junho, a decisão sobre o teletrabalho poderia ser tomada de forma unilateral por um trabalhador, o primeiro-ministro disse que se aplicarão as regras gerais“Aquilo que voltará é a legislação normal e, portanto, entre as entidades patronais e os trabalhadores deverá haver um acordo sobre o acesso ao teletrabalho”, afirmou.

Apesar deste entendimento, o Governo legislou no mesmo dia em sentido contrário, ao manter que “o regime de prestação subordinada de teletrabalho pode ser determinado unilateralmente pelo empregador ou requerido pelo trabalhador, sem necessidade de acordo das partes, desde que compatível com as funções exercidas”. Só que não se sabe se a norma desse diploma — o Decreto-Lei n.º 22/2020 — estará em vigor a 1 de Junho e, portanto, não se pode dizer que assim será nessa altura.

Embora a dispensa de acordo esteja prevista neste diploma, essa norma tem de ser vista em conjunto com uma outra, pelo menos até 31 de Maioenquanto durar a situação de calamidade, pois a resolução do Conselho de Ministros que prolongou essa declaração indica que o teletrabalho é obrigatório, se esta modalidade for compatível com as funções.

Assim sendo, a tal opção do trabalhador ou da empresa em determinar o teletrabalho só tem um efeito prático quando terminar a situação de calamidade, mas, tendo Costa dito que a partir de 1 de Junho deverá existir acordo, fica a dúvida sobre o que estará em vigor afinal nessa altura.

Questionado sobre o que prevalecerá, o gabinete do primeiro-ministro admitiu uma clarificação. “Até 1 de Junho o quadro legal aplicável ao teletrabalho é o que resulta da conjugação da resolução do Conselho de Ministros que renovou a situação de calamidade com o Decreto-Lei n.º 22/2020Este quadro legal vigora até essa data e será necessariamente revisitado aquando do próximo momento de reavaliação da situação de calamidade, i.e., antes de 1 de Junho, de acordo com a periodicidade quinzenal que tem vindo a ser observada”, respondeu ao PÚBLICO o gabinete do primeiro-ministro, através do seu gabinete de imprensa. A resposta não reafirma que vigorará a legislação normal, mas também não exclui que tal venha a acontecer.

Para o advogado Pedro da Quitéria Faria, responsável pelo departamento laboral da sociedade de advogados Antas da Cunha ECIJA, a norma que permite a adopção do teletrabalho unilateralmente pela empresa ou a pedido do trabalhador, sem ser necessário acordo, deve ser entendida como “uma imposição legal especial e atípica que tem em conta o momento excepcional e único que vivemos, o que não quer necessariamente dizer que essa imposição unilateral não redunde em conflitualidade laboral”. O especialista refere-se à divergência que pode existir — como hoje, diz, já acontece — em torno do “conceito de compatibilidade com as funções exercidas”, pois ele pode ser “interpretado de forma diametralmente oposta por empregador e trabalhador”.

Se a tal norma especial continuar a vigorar após a situação de calamidade (ou seja, após 31 de Maio), aplica-se esse regime excepcional que dispensa a existência de acordo. Já se a norma especial deixar de vigorar, explica a advogada de direito laboral Sofia Monge, “a sujeição de um trabalhador, ou não, ao regime de teletrabalho deverá observar o que porventura estiver estabelecido em instrumento de regulamentação colectiva aplicável e no Código do Trabalho”.

Monge, sócia da Carlos Pinto de Abreu & Associados, lembra que à luz do Código do Trabalho, e “contrariamente ao regime excepcional agora vigente”, é preciso acordo, “mesmo que nada obste a que a actividade a prestar possa ser exercida neste regime [de teletrabalho]”, ou seja, mesmo quando esta modalidade é compatível com as funções.

A partir daí, há uma série de questões a ter em conta, em particular quando se prevê que haverá um regime “misto”, como lhe chama Pedro da Quitéria Faria.

Sofia Monge explica que se uma das partes, seja o trabalhador ou o empregador, pretender que se aplique o teletrabalho, mesmo que a tempo parcial, os dois “deverão celebrar um contrato escrito que expressamente preveja o desempenho de funções nesse mesmo regime”, documento que terá de ser preenchido com um conjunto de referências. Para a advogada, esse documento deve referir “expressamente o número de dias de trabalho, por semana, mês ou ano que o trabalhador o irá prestar”. Não é preciso que se indiquem os “concretos dias e horas em que a actividade será prestada”, mas “nada impede, no entanto, que tal suceda”, diz Sofia Monge.

Organizar as escalas

Pedro da Quitéria Faria entende que deve ser celebrada uma adenda ao contrato de trabalho (e não um novo contrato) e recomenda que fique ali previsto um conjunto de referências para conciliar os dias de presença em casa com as escalas em espelho na empresa, ou questões tão distintas como o pagamento de despesas de consumo em casa ou a própria fiscalização dos períodos de teletrabalho.

“A partir do momento em que exista um regime ‘misto’ de modalidades de laboração, ou seja, em que a mesma é efectuada presencialmente mas também em regime de teletrabalho, entendo como altamente defensável a elaboração de uma adenda aos contratos de trabalho que venha consensualmente a espelhar a nova realidade da prestação de trabalho. Isto, porque existirá uma necessária e relevante alteração da prestação laboral e da sua modalidade, que passará a ser ‘mista’, e ainda porque se antevê alterações aos horários de trabalho anteriormente convencionados em contrato ou instrumento de regulamentação colectiva, a eventual implementação de turnos, a regulação dos dias de trabalho presencial e de teletrabalho”, enumera.

Há outros pormenores que o advogado da Antas da Cunha ECIJA considera que devem ficar acautelados por escrito: “O domicílio onde o trabalhador exercerá a sua actividade nos dias em que se encontre em teletrabalho, o prazo de duração deste regime misto (que no actual contexto é necessariamente incerta), a indicação dos períodos normais de trabalho e de descanso, a forma como as escalas em espelho serão efectuadas e o prazo de aviso prévio para a sua alteração, a quem competirá a propriedade dos instrumentos de trabalho (se opera a presunção que são do empregador), bem como o responsável pela respectiva instalação e manutenção e pelo pagamento das inerentes despesas de consumo e de utilização, a identificação ou a manutenção do estabelecimento ou departamento da empresa em cuja dependência fica o trabalhador, bem como quem este deve contactar no âmbito da prestação de teletrabalho, o regime de privacidade e fiscalização dos períodos de teletrabalho, entre outros”.

Pedro Crisóstomo - 21 de Maio de 2020, Público