ADSE: eleições arrancam em clima de descontentamento dos beneficiários

"Mais uma vez o organismo público de gestão participada — modelo jurídico que ganhou em 2017 — terá saldo positivo em 2022, na ordem dos 148 milhões de euros, e são antecipados outros 61 milhões de euros para 2023."

Em 2021 o saldo de caixa da ADSE estava nos 934 milhões de euros, o que significa que, caso as previsões do Conselho Diretivo se confirmem, no final do próximo ano serão cerca de 1100 milhões de euros.

Quase um milhão de votantes são chamados a escolher os quatro representantes no Conselho Geral e de Supervisão do subsistema de saúde público. Conheça cinco desafios que a ADSE tem pela frente

As eleições para os quatro representantes dos beneficiários no Conselho Geral e de Supervisão da ADSE (CGS) arrancam esta segunda-feira, 28 de novembro, às 9h, e duram três dias online (até às 17h00 do dia 30, em contínuo), com a quarta-feira a juntar o ato presencial nas secções de voto existentes em organismos públicos nas capitais de distrito em Portugal continental e nas regiões autónomas. Foram admitidas sete listas de candidatos às eleições, cujos programas e composição estão disponíveis no site da ADSE, onde está igualmente o passo a passo do voto eletrónico.

A lista A é liderada por João Neto, médico dentista e professor no ensino superior, a lista B apresenta-se com Henrique Vilallonga, desenhador no município de Serpa e dirigente no Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional (afeto à CGTP), a lista C é encabeçada por Rogério Matos, técnico superior da ADSE (tem o apoio da Associação 30 de Julho — Associação Nacional de Beneficiários da ADSE e da APRe! — Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados), a lista D tem à frente o professor Arlindo Ferreira, a E apresenta-se com Alexandre Lourenço, administrador hospitalar e ex-presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (tem do seu lado a Fesap — Federação de Sindicatos da Administração Pública e de Entidades com Fins Públicos, da UGT), a F é representada por Mário Rui Cunha, assistente técnico no município de Viana do Castelo (as estruturas sindicais Fesinap, STTS e STMO são apoiantes) e pela lista G surge Maria Helena Rodrigues, técnica superior e presidente do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (filiado na UGT).

No total, são 935.442 beneficiários aposentados e no ativo que são titulares e que integram o colégio eleitoral. Destes, 869.893 são os chamados pagantes, ou seja, são quem desconta 3,5% do rendimento bruto (pensão ou salário 14 vezes por ano, subsídios de férias e de Natal incluídos). Os restantes 65.549 beneficiários são todos reformados, têm exatamente os mesmos direitos que os demais, mas estão isentos, pois recebem, por mês, uma pensão inferior a 635 euros.

MAIS DE UM MILHÃO DE BENEFICIÁRIOS E RECEITAS A CAMINHO DOS 800 MILHÕES DE EUROS

Incluindo familiares, cerca de 1,3 milhões de pessoas estão inscritas na ADSE, o que corresponde a cerca de 13% da população portuguesa. Para 2023 estão previstas receitas superiores a 772 milhões de euros, mais 3,8% face aos quase 744 milhões de euros projetados para o final do ano, segundo o parecer do CGS sobre o orçamento do instituto para o próximo ano. É o resultado do aumento das contribuições dos beneficiários em 2,5%, para quase 771 milhões de euros, o que reflete as valorizações remuneratórias, a progressão de carreiras e o crescimento dos beneficiários titulares, fruto do alargamento da ADSE aos trabalhadores com contrato individual de trabalho, em finais de 2020.

Mais uma vez o organismo público de gestão participada — modelo jurídico que ganhou em 2017 — terá saldo positivo em 2022, na ordem dos 148 milhões de euros, e são antecipados outros 61 milhões de euros para 2023.

Em 2021 o saldo de caixa da ADSE estava nos 934 milhões de euros, o que significa que, caso as previsões do Conselho Diretivo se confirmem, no final do próximo ano serão cerca de 1100 milhões de euros.

Um colosso cuja missão de dar acesso a cuidados médicos aos beneficiários está a enfrentar alguns problemas, e cuja situação financeira não é garante da sua sustentabilidade.

Em cinco pontos o Expresso resume as dificuldades e incongruências que afetam o subsistema de saúde dos funcionários públicos, no primeiro dia em que vão a votos.

  1. EXCEDENTE DISPARA, MAS BENEFICIÁRIOS NÃO CONSEGUEM FAZER UM RAIO-X

Este ano é marcado pela entrada em vigor das novas tabelas de preços para o regime convencionado e têm-se registado disrupções no acesso a alguns cuidados de saúde, já que há atos (como exames) e médicos especialistas que deixaram de ter acordo com a ADSE.

Aliás, a despesa no regime livre (em que o beneficiário paga e depois pede o reembolso à ADSE) deverá crescer este ano 10,3%, para 165 milhões de euros, contra uma subida de apenas 2,8%, para 417 milhões de euros, no custo com o regime convencionado.

A transferência dos beneficiários do regime convencionado para o sistema livre preocupa o CGS, já que o regime de reembolso é mais oneroso para o doente, que, além de pagar mais, também tem de ter capacidade para adiantar o valor total da despesa.

Os preços desajustados estão a provocar uma saída, sem precedentes, de atos e de médicos da esfera das convenções com a ADSE e o acesso dos beneficiários a exames, como mamografias, ou simples raio-x, a consultas de dermatologia ou urologia e a cirurgias está cada vez mais limitado. A necessidade de atualizar os preços ao valor da inflação é reconhecida pelo Conselho Diretivo, indica ao Expresso Eugénio Rosa, vogal na direção da ADSE em representação dos beneficiários. Mas o problema não se resolve só com o aumento dos valores pagos pela ADSE, sinaliza o responsável, já que no caso das cirurgias há que garantir que os honorários dos médicos não são esmagados.

Sem acesso a exames e a médicos, qual é a vantagem de ter ADSE, cuja adesão é voluntária? A reformulação das tabelas do regime convencionado e a resposta à fuga dos prestadores privados dos acordos são o grande desafio do novo CGS e do membro do Conselho Diretivo que será escolhido para representar os beneficiários.

  1. PAGANTES SUPORTAM POLÍTICA SOCIAL DO ESTADO

Outro desafio é o das isenções de quotizações existentes na ADSE, que abrangem mais de 65 mil beneficiários, com pensões inferiores a 635 euros. Embora estas isenções decorram de uma política social do Estado, decisão tomada quando o subsistema de saúde era financiado pelo Orçamento do Estado, o que não acontece desde 2014 – embora as autarquias continuem a pagar a ADSE (ver ponto 5), os custos com estes beneficiários são suportados pelas quotizações, que pagam mais 90% da atividade do instituto. As restantes receitas vêm de serviços, como as juntas médicas, que a ADSE presta para o Estado.

A isenção foi decidida pelo Governo em 1979 quando os beneficiários no ativo começaram a pagar 0,5% e foram dispensados desse pagamento os trabalhadores na situação de aposentação ou reforma. Tal situação de isenção (bastante mais limitada) mantém-se até hoje e aos isentos acrescem os respetivos familiares.

O rápido crescimento no número dos não pagantes levou o Governo, no final de dezembro de 2020, a determinar que a isenção deixasse de estar indexada ao salário mínimo nacional (cujas atualizações têm sido superiores aos aumentos nos salários e pensões da Administração Pública) e passasse a ter como referência os 635 euros.

A situação tem sido sinalizada de forma reiterada em pareceres do CGS como “uma medida clara de solidariedade pelo que, analogamente ao que acontece com Regime não Contributivo da Segurança Social, o seu custo deve ser suportado pelo Orçamento de Estado, num custo atual estimado em menos de 13 milhões de euros [cerca de 40% do total da despesa real com estes beneficiários], conforme recomendação do Tribunal de Contas”, indicava o órgão de supervisão numa informação do início de 2020. Esta dívida do Estado está contabilizada nas contas da ADSE desde 2015.

  1. TUTELA BICÉFALA MANTÉM ADSE COMO UMA ‘DIREÇÃO-GERAL’ SEM AUTONOMIA DE GESTÃO

A ADSE, subsistema de saúde dos funcionários públicos, está a ser “estrangulada” pelo Governo, acusam os beneficiários e os seus representantes, num consenso que surge dentro de um grupo alargado com muitas divergências de opinião sobre as mudanças necessárias para a ADSE – desde Eugénio Rosa, ao presidente do CGS, João Proença, passando por candidatos às eleições do CGS, a que se somam as vozes da Associação 30 de Julho (A30/7) – Associação Nacional de Beneficiários da ADSE e da organização de pensionistas APRe!.

As críticas identificam a inação do Ministério da Presidência, que – através da secretária de Estado da Administração Pública, Inês Ramires – tem a tutela estratégica do instituto, e a austeridade imposta pelo Ministério das Finanças, responsável pelo pelouro financeiro, como ‘espartilhos’ que estão a impedir o subsistema público de saúde de funcionar de forma adequada e de acautelar os serviços devidos aos beneficiários.

Apesar da ingerência no subsistema, o Executivo ‘falha’, por outro lado, na tomada de decisões relevantes para o funcionamento da ADSE, como permitir novos contratos de aluguer de viaturas e a substituição dos que caducaram. Mas há constrangimentos mais graves, como o facto de a ADSE estar impedida de recrutar os colaboradores em falta no quadro de pessoal quando conta apenas com 189 funcionários, face aos 279 trabalhadores que compõem o quadro de pessoal. Note-se que os salários dos colaboradores são pagos pelas quotas dos beneficiários.

  1. MIL MILHÕES AJUDAM AO DÉFICE DAS CONTAS PÚBLICAS SEM CONTRAPARTIDA PARA OS BENEFICIÁRIOS

O excedente de 934 milhões de euros está depositado em contas do Tesouro e aplicado em Certificados Especiais de Dívida de Curto Prazo, sem quase qualquer rendimento. Ou seja, trata-se de saldos acumulados que pertencem aos beneficiários do subsistema, mas que não são geridos em função dos seus interesses, servindo, ao invés, para ajudar as contas públicas e consequente redução do défice.

A ADSE está na esfera da administração indireta do Estado e tem de seguir determinadas normas, o que faz com que a aplicação do excedente tenha, por lei, de ser feita junto da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP). O que significa que com a inflação elevada que se verifica atualmente os beneficiários estão a perder dinheiro.

Este excedente tem vindo a ser contemplado no Orçamento do Estado (OE) numa alínea que determina a transição de saldos da ADSE (assim como dos SAD e ADM, subsistema de proteção na doença dos militares e das forças de segurança) de um ano para o outro, tal como acontece no Orçamento do Estado para 2023: “Os saldos apurados na execução orçamental de 2022 da ADSE, dos SAD e da ADM transitam automaticamente para os respetivos orçamentos de 2023”.

Mas e se esta alínea desaparece do OE? “É uma preocupação que tenho”, refere ao Expresso João Proença.

  1. A INUSITADA SITUAÇÃO DAS AUTARQUIAS QUE PAGAM A ADSE E MESMO ASSIM OS FUNCIONÁRIOS DESCONTAM 3,5%

Em 2014, na sequência da intervenção da troika, a ADSE tornou-se autossuficiente. Para isso, aos funcionários do Estado foi imposto um desconto de 3,5% no salário ou na pensão para pagar o acesso ao subsistema público de saúde. A administração central ficou desonerada e a ADSE tem tido generosos saldos positivos, porém, não foi nesse momento, nem nos anos seguintes, que o subsistema deixou de ter financiamento público. A administração local, todos os anos, envia para os cofres da ADSE uma média de 40 milhões de euros por conta dos cuidados de saúde prestados aos funcionários municipais via regime convencionado da ADSE (em que existe um protocolo com um prestador hospitalar privado). Aos municípios cabe também pagar aos trabalhadores as despesas que estes suportam no regime livre da ADSE. Estima-se que este custo anual ascenda a cerca de 35 milhões de euros. Ou seja, são cerca de 75 milhões de euros por ano a cargo das câmaras. Somado a isto, ao subsistema público de saúde é entregue o desconto de 3,5% por cada um dos beneficiários municipais, bem como uma quotização anual de 1,25 euros por titular inscrito e por cada familiar.

As juntas de freguesia também pagam o acesso à ADSE, mas através de um sistema de capitação, que consiste na cobrança de um valor fixo (466,47 euros em 2022) por cada beneficiário inscrito, que, por sua vez, emite uma nota de cobrança mensal. Os 3,5% são igualmente cativados aos funcionários e entregues ao instituto público.

Numa auditoria de seguimento (relatório de 2019), o Tribunal de Contas reafirmava que “as entidades empregadoras das autarquias locais continuam a constituir uma fonte de financiamento público da ADSE” e sinalizava as recomendações para eliminar este quadro.

Recentemente, os municípios pediram ao Governo para deixarem de reembolsar a ADSE pelos atos médicos dos seus funcionários, que só este ano irá representar um custo de 60 milhões de euros. Para a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), é um “absurdo” e “insustentável” que as autarquias continuem a pagar este encargo, do qual a Administração Central já se viu livre em 2015.

Para o ainda presidente da ADSE, João Proença, a solução passa por o Estado começar a pagar à ADSE o correspondente a 0,5% da massa salarial dos funcionários públicos e, assim, em vez de serem apenas as autarquias e juntas de freguesia a suportarem este encargo, o mesmo é distribuído por “todos”, ou seja, pelos organismos da Administração Central, Regional e Local. João Proença esclarece que não se está a pedir mais dinheiro ao Estado, mas sim a propor a resolução da situação das autarquias que, desde 2010, suportam os custos de saúde dos seus trabalhadores (recebendo uma contrapartida, via Lei das Finanças Locais), numa situação de desigualdade perante os restantes empregadores do sector público.

Expresso.pt 28 de novembro Ana Sofia Santos