Estudo encomendado pelo Governo defende sistema de propinas por escalões de rendimentos

Cursos superiores mais baratos para os alunos mais pobres e mais caros para quem pode pagá-los, sugere estudo da OCDE. Modelo de financiamento do sector deve ser revisto “do zero”.

Alunos mais pobres pagam 8,5 vezes menos propinas do que os mais ricos no modelo proposto pela OCDE

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) propõe a introdução em Portugal de um sistema de propinas por escalões, sendo o custo dos cursos superiores diferente em função dos rendimentos das famílias dos estudantes. O modelo é usado na Bélgica e seria “mais eficiente” do que uma redução transversal como a que foi feita nos últimos anos, defende o organismo internacional, num relatório sobre o financiamento do ensino superior encomendado pelo Governo que é apresentado esta segunda-feira.

Nas últimas duas legislaturas o Parlamento aprovou sucessivas reduções do valor das propinas. O custo máximo de uma licenciatura fixa-se actualmente em 697 euros anuais, o que, segundo a OCDE, coloca Portugal no grupo de países europeus com valores de propinas “relativamente baixos”, juntamente com a Áustria ou a França, por exemplo.

O organismo internacional considera que a decisão de reduzir as propinas e a consequente compensação nas transferências do Estado para as instituições de ensino superior, “absorveu recursos públicos significativos” que pagaram o que é “efectivamente um subsídio não direccionado, que beneficia não apenas os estudantes de menores rendimentos, mas também os de rendimentos médios e elevados”, lê-se no relatório encomendado pelo Governo.

Aponta-se, por isso, no sentido de “um sistema progressivo de propinas”, com custos mais baixos para alunos bolseiros e de menores rendimentos, um escalão intermédio para alunos que ficam perto de cumprir o critério para ter bolsa e valores mais elevados para os estudantes de famílias mais ricas. A proposta é semelhante ao modelo que existe na Bélgica, nos territórios da comunidade flamenga. Ali, os estudantes mais pobres pagam 113,20 euros anuais, ao passo que os estudantes mais ricos pagam 961,90 euros. Uma diferença de oito vezes e meia. O escalão intermédio é de 505,90 euros.

Propinas valem 15% das receitas

A OCDE acredita que um modelo como este pode “libertar recursos” para baixar o limiar de elegibilidade para bolsas de estudo – à semelhança do que aconteceu no início deste ano lectivo e também há dois anos – e garantir que o país apoia mais estudantes durante a frequência do ensino superior português.

No ano passado, houve cerca de 100 mil estudantes bolseiros, num total de mais de 400 mil inscritos no ensino superior. “O sistema público de apoio financeiro em Portugal apoia uma proporção relativamente pequena da população estudantil”, conclui o organismo internacional.

Uma solução por escalões para as propinas de universidades e politécnicos é relativamente nova e tem estado arredada da discussão pública sobre o tema em Portugal. Depois das reduções do custo de frequência de uma licenciatura, o Governo chegou mesmo a defender o fim das propinas nas licenciaturas. Foi no início de 2019, durante a Convenção Nacional do Ensino Superior, primeiro pela voz do então ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, logo secundado por Pedro Nuno Santos, então secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e Alexandra Leitão, que era secretária de Estado da Educação.

Na altura, o próprio Presidente da República mostrou-se “totalmente” a favor do fim das propinas, o que lhe valeu críticas do PSD, obrigando Marcelo Rebelo de Sousa a justificar essa posição, enquadrando a medida num objectivo nacional de recuperar o atraso do país ao nível das qualificações.

As propinas representam a segunda maior fonte de receita para as instituições de ensino superior, sendo apenas superadas pelas transferências directas do Estado, nota também a OCDE no relatório que é apresentado esta segunda-feira. No caso das universidades, correspondem a 15% dos seus orçamentos. Essa proporção é ainda maior nos institutos politécnicos: 17%.

Indicadores como estes fazem com que as instituições de ensino superior nacionais sejam “menos dependentes de fundos públicos” do que os parceiros dos principais sistemas de ensino, nota o mesmo documento. Não é a primeira vez que o organismo internacional chama a atenção para o escasso compromisso do orçamento nacional com o ensino superior. Na última edição do seu relatório anual Education at a Glance, publicado em Outubro, a OCDE colocou o país “entre os que menos gastam” com o sector. Agora, volta a sublinhar que Portugal investe o equivalente a 0,9% do seu Produto Interno Bruto, em comparação com uma média nos países da OCDE de 1,1%.

O relatório sobre o financiamento do ensino superior nacional foi encomendado pelo anterior ministro da Ciência e Ensino Superior, Manuel Heitor. A sua sucessora, Elvira Fortunato, disse na terça-feira no Parlamento que o documento “constituirá um elemento essencial para a modernização do modelo actualmente vigente”. A revisão da forma como é feita a distribuição das verbas do Estado para o ensino superior foi um dos primeiros compromissos assumidos pela Governante assim que tomou posse.

Financiamento "do zero"

A OCDE defende que a nova fórmula para distribuir o investimento do Estado nas universidades e politécnico deve ser definida “do zero” (“zero-based budgeting” é a expressão adoptada no relatório). As regras de repartição das verbas do Orçamento do Estado foram definidas em 2006, mas abandonadas quatro anos depois. Desde então, as transferências do erário público passaram a ser feitas com base num histórico que faz com que instituições que, nos últimos anos, cresceram em número de alunos e professores, como o Iscte — Instituto Universitário de Lisboa, a Universidade do Minho e a Universidade da Beira Interior, estejam a receber menos do que as suas necessidades reais.

A OCDE reconhece essa “divergência significativa” no nível de financiamento público e defende um novo modelo que conjugue uma componente de transferências de base e outras variáveis. A nova fórmula deve considerar desde o início, por exemplo, o investimento nas actividades de investigação e também os resultados das instituições, nomeadamente ao nível do número de diplomados, propõe aquele organismo.

Já o financiamento adicional deve apoiar, por exemplo, as instituições situadas em regiões onde a população está a decrescer – a demografia é apontada como um dos grandes desafios do sistema de ensino superior nacional para os próximos anos. O relatório reconhece a importância de “garantir a cobertura territorial” da rede de ensino, sobretudo ao nível das licenciaturas e cursos técnicos superiores profissional.

Outros factores que merecem um acréscimo do investimento do Estado são as estratégias de desenvolvimento de cada instituição. A OCDE defende uma maior diversidade das universidades e politécnicos, tendo cada uma um "perfil forte". Estas estratégias devem ser contratualizadas com o Governo para períodos de quatros anos, é ainda proposto.

A introdução de um novo modelo de financiamento deve ainda ser “progressiva”, com um “período de transição” que permita às instituições que vão passar a receber uma menor fatia do orçamento estatal adaptarem-se a essa circunstância.

Samuel Silva, 19 de Dezembro de 2022, Público