Entrevista com a ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública

Alexandra Leitão: “Este é um ministério de acção”

Alexandra Leitão vai fazer a “coordenação” e a “orientação” de todas as negociações sindicais da função pública, acompanhando mesmo as das carreiras especiais.

Quer que os aumentos salariais sejam negociados num programa plurianual, que inclua critérios como a pré-reforma, assiduidade e a formação profissional.

Aos 46 anos, Alexandra Leitão é ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública com um vasto “caderno de encargos”, onde irá jogar o seu “algum peso político”, uma vez que integra o secretariado nacional do PS. Tem o objectivo de olhar para o “grande quadro” da administração pública, depois de fazer um “recenseamento” aprofundando “o sistema de informação da organização do Estado”, para fazer o “planeamento centralizado quer do recrutamento, quer das promoções”.

Vai tutelar toda a administração pública, a central, a local e as carreiras especiais?
A lei orgânica do Governo esclarecerá que terei a administração local, a central, que inclui todos os serviços públicos e todos os trabalhadores públicos, sem prejuízo de que, no que toca às carreiras especiais, aquilo que vai ser definido é uma função de coordenação e de orientação. Vai ser este ministério, em articulação com os ministérios sectoriais, quem define, por exemplo, que carreiras especiais são para rever e quais as que o não são, em função de juízos variáveis de equidade e outros. A negociação concreta será feita pelos ministérios sectoriais, sem prejuízo do nosso acompanhamento.

“Não são só os professores que são uma classe envelhecida, é transversal a toda a administração”

A criação deste ministério permite uma maior abertura na despesa pública, sobretudo uma abordagem menos financista da administração pública?
Sim, essa é a intenção. A ideia tem três vectores essenciais. Um é fazer uma abordagem mais rica da administração pública. Não apenas na perspectiva de todos os anos negociar quais são as actualizações, os aumentos ou outros pacotes com impacto financeiro. Mas também fazer um acompanhamento, a que chamo inovação, e que tem a ver com a gestão de recursos humanos. Hoje, se queremos ter bons serviços públicos em todas as áreas, temos de ter recursos humanos bem geridos, geridos de forma inovadora, partilhada. Este ministério não pode ser simbólico, nem de pensamento ou de estudos. Este é um ministério de acção. A ideia é mesmo fazer mais coisas.

Tutela a modernização administrativa. Os programas Simplex vão continuar?
O meu ministério inclui duas linhas a que chamo de inovação e de modernização. Inovação é para dentro da administração pública, na gestão dos serviços humanos. Coisas que já estavam a ser feitas e devem ser aprofundadas e coisas novas. Por exemplo, usar do antigo CIGEP [Centro de Inteligência em Gestão Pública] para introduzir formas inovadoras de gestão, partilhar recursos, valorizar muito as funções dos técnicos superiores. Ao nível da modernização no atendimento do serviço público, é a continuação dos Simplex, naquilo que pode ser muito útil que é a ligação entre o INA [Instituto Nacional de Administração] e a AMA [Agência para a Modernização Administrativa]. O INA já teve uma função mais de formar quadros para novas tecnologias e modernização. Porque, para modernizar, precisamos de ter quadros formados, modernizados. Será aprofundado o Simplex e serão criadas medidas emblemáticas que gostaria pudessem ser feitas já nos primeiros cem dias.

Quais?
Implementar mesmo, já está em fase avançada, o número único do cidadão, que é uma espécie de porta de entrada na administração pública, em que o cidadão liga para um número fácil de decorar, diz o que precisa e encaminham-no para o serviço respectivo. Outra coisa que é fazível em curto espaço de tempo é aumentar a validade de alguns documentos pessoais.

Em relação aos centros de competências, já há jurídicas e informáticas. Quais vai lançar?
A nossa ideia é criar mais. Uma das áreas em que era importante criar centros de competências é na área do planeamento e da gestão. Ter pessoas que fazem planeamento da administração publica a um nível macro. E quando digo planeamento pode ser ao nível de fundos comunitários. E também de gestão, incluindo aí também o nível das relações internacionais do Estado.

Reunindo a modernização administrativa e a descentralização, significa que, tal como transparece do Programa do Governo, vai haver uma reestruturação de carreiras da função pública, num sentido reformista?
Bom, fazia aí uma separação. Ao juntarmos a modernização com a administração local e com a descentralização, uma das coisas que, para mim, é fundamental – e nós hoje falamos em serviços partilhados da administração central – é poder fazê-lo também com a administração local, criando essas sinergias, ao nível das Comunidades Intermunicipais. Por exemplo – está no Programa do Governo –, passar alguns serviços desconcentrados da administração central para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Que podemos criar aqui? Há Espaços do Cidadão em que hoje temos alguns serviços a ser prestados, mas se calhar não temos os mais importantes, por exemplo, o Cartão do Cidadão. Até que ponto é que podemos modernizar, indo até à administração local? Há zonas do país onde a presença do Estado não se faz sentir como devia, no bom sentido. As pessoas sentem que o Estado só chega lá através da autarquia local, da escola ou de um centro de saúde. Podemos ter um conjunto de serviços que são tradicionalmente da administração central e que podem ser prestados ao nível local.

Isso é na vertente de chegar aos cidadãos. A minha pergunta ia mais longe. Vai olhar para o grande quadro, vai ter a visão macro da administração pública, vai conseguir perceber o que é que está anacrónico, onde é que há faltas, onde é que há necessidades, na própria gestão das carreiras públicas? Vai mexer nisso num sentido de reformar mesmo?
Temos de planear o recrutamento e fazê-lo centralizadamente, além de mais simplificadamente, para conseguirmos pôr pessoas mais depressa dentro da administração, onde elas são necessárias. Ou seja, é olhar para o grande quadro e perceber onde é preciso pessoas e onde é que há a mais. Neste momento, temos em curso o procedimento para os mil técnicos superiores para áreas que foram identificadas – tecnologias da informação, juristas, planeamento e relações internacionais –, para que, nos sítios em que eles fazem falta, ter essa centralização no recrutamento. Mas também, eventualmente, onde mais houver a fazer essa gestão global. Vou ser muito franca. É muito difícil fazer uma gestão global desse quadro porque temos ministérios sectoriais e os serviços que também têm os seus interesses. E, por sua vez, também – e bem –, os direitos laborais das pessoas, que só se movem se quiserem. Desconcentrar um serviço é muito difícil, porque as pessoas vivem em Lisboa. Tem que ser faseado e negocialmente. Não antevejo que seja fácil, agora é de facto esse o meu objectivo e o meu caderno de encargos.

Será feito de forma gradual e plurianual?
Gostaria muito que conseguíssemos negociar com as frentes sindicais um pacote plurianual, que meta várias coisas. Além das valorizações salariais, coisas que têm a ver com o rejuvenescimento utilizando a figura da pré-reforma, que têm a ver com incentivos à assiduidade, que foi algo que já existiu e que caiu no tempo da troika. E, na medida em que temos uma taxa de absentismo muito elevada, se é verdade que ela pode ser atacada através das juntas médicas, também um incentivo à assiduidade é importante. Outra coisa muito importante é fornecer, a custo do Estado, formação nas áreas em que as pessoas precisam. Portanto, fazer aqui um pacote plurianual de valorização dos trabalhadores de emprego público, que não tem só a componente salarial e que tem também rejuvenescimento, assiduidade, formação.

Há noção exacta de quantos funcionários públicos existem, onde estão e o que fazem?
Quando estive no Ministério da Educação fizemos um recenseamento dos professores existentes nas escolas e que agora é só manter actualizado. Um dos pontos que achamos essencial é aprofundar – ele já existe mas precisa de grande desenvolvimento – o sistema de informação da organização do Estado, porque ele vai dizer-nos quantos funcionários há, qual o seu perfil, a sua caracterização e é isso que vai permitir o tal planeamento centralizado quer do recrutamento, quer das promoções. É algo que está em curso, que planeamos ampliar e pôr em velocidade de cruzeiro.

A reestruturação da administração pública implica coordenar e orientar outros ministérios. Pensa que vai conseguir impor pontos de vista e regras novas?
Estava num ministério que era difícil, mas sectorial. Este é um ministério muito transversal em que vai ser preciso falar com muitos outros ministérios, desde logo com as Finanças, mas não só. A transição digital está na Economia, as CCDR estão na Coesão, esse é um dos grandes desafios. É esta transversalidade que faz com que seja preciso fazer pontes e também ter algum peso político para fazer valer algumas das nossas ideias.

Como será feita a avaliação simplificada da função pública?
Há duas dimensões. Uma ao nível dos dirigentes. Mantendo o sistema da Cresap, quando o dirigente é escolhido, que ele possa constituir a sua equipa e ter uma espécie de carta de missão, a partir da qual presta contas e que tem influência no seu mandato, na duração e renovação, inclusivamente. Nas empresas públicas já temos isso. Depois, a simplificação da avaliação dos funcionários é importante porque toda a gente se queixa da complexidade do SIADAP [Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da Administração Pública]. Temos de o fazer, estudando e analisando como se pode melhorar. Agora, o que está em cima da mesa é analisar as equipas como um todo e com os seus objectivos. Sendo que é muito importante criar capacidade científica e técnica na administração pública, porque é isso que liberta os políticos para aquilo que eles devem essencialmente fazer, que são políticas públicas.

Vão manter a progressão automática?
Nas carreiras gerais as pessoas progridem ao fim de dez anos, quando têm um ponto, sendo que quem não tem esse ponto é porque tem uma avaliação negativa e isso tem consequências de outra natureza. As pessoas ao fim de dez anos e dez pontos progridem, tiveram uma avaliação, não diria que é automática. Neste momento, não está previsto que isso seja repensado. O que está previsto que seja pensado é a promoção. A promoção, tal como o recrutamento, é que tem que ser pensada de forma planeada na tal visão integrada. Porque progredir ao fim de dez anos, se compararmos com as progressões nas carreiras especiais, convenhamos...

Os funcionários públicos normais ganham mais do que os do privado, mas os quadros superiores ganham muito menos. Procurarão valorizar os salários dos quadros superiores, até para tornarem esses lugares mais atractivos?

Não sei qual é a margem orçamental e tudo isto tem de ser feito num pacote plurianual. Mas essa valorização terá de passar por algum tipo de valorização salarial, como já hoje acontece nos centros de competências. No jurídico, isso conseguiu-se fazer para precisamente ser atractivo para pessoas que vêm de escritórios de advogados ou são académicos e que não vinham se viessem ganhar como técnicos superiores. Mas a valorização terá de passar também pela lógica de vários níveis, em que a formação suportada pelo Estado é uma das dimensões. Mas sim. Tem que haver uma valorização daqueles quadros que trazem à administração pública a capacidade técnica e científica. Se não valorizarmos os técnicos superiores não vamos conseguir estancar a fuga para o outsourcing.

O recurso aos gabinetes de advogados...
E não só. Em várias áreas. Mas tem provocado uma descapitalização total da administração pública. Quando eu quero um grande projecto complexo de tecnologias da informação compro de chave na mão a uma empresa. Quando tenho um contencioso ou até uma montagem contratual complexa de uma grande contratação pública, vou a um escritório de advogados. Essa fuga para o outsourcing, que é uma realidade há anos, tem descapitalizado a administração pública de uma maneira incrível. E está por provar que seja mais barato. É o capital humano de que a administração pública precisa.

Do que diz, pressuponho que vai haver novos concursos para funcionários públicos especializados?
Nas áreas que sejam centralizadamente entendidas como necessárias para criar esse tal capital humano, sim.

São José Almeida - 1 de Novembro de 2019, Público