Ensino superior: o que a covid-19 acelerou

Os grandes desafios para o ensino superior pós-covid-19, capitalizando as mudanças operadas nas últimas semanas, parecem ser o reequacionar de práticas, estratégias e missões, no quadro de uma sociedade e de uma economia digitais, em que os avanços da tecnologia e da ciência possam permitir uma educação melhor e mais inclusiva que responda aos reais desafios societais (e demográficos).

A atividade do ensino superior público está (e bem!) sob o juízo social permanente, embora algumas avaliações, vincando desajustes com as vontades política, empresarial e/ou popular, nem sempre sejam justas. Nos últimos anos, tornando-se sempre mais massificado, o ensino superior foi sujeito a pressões dos desequilíbrios demográficos do país, da necessidade de restruturação da rede, e de alguma hierarquia entre áreas disciplinares que privilegiou ciências e tecnologias aplicadas em detrimento de ciências fundamentais e de ciências sociais e humanas. Ainda assim, adaptou-se e reformou-se, timidamente.

Sendo bastante subfinanciado pelo Orçamento do Estado, apesar do contrato de legislatura assinado no final de 2019, reforçou, quando possível, a captação de verbas por vias alternativas, nomeadamente pela prestação de serviços, pelos projetos de investigação e transferência e pela captação de estudantes internacionais, cujas propinas são significativamente superiores às que pagam os restantes. Embarcou numa onda de internacionalização, nem sempre estrategicamente delineada que, por vezes, negou valores e necessidades locais/nacionais e retóricas de áreas disciplinares linguística e culturalmente ancoradas e seguiu quadros de referência padronizados pelo monolinguismo numa pseudo língua franca, por métricas e por regras totalmente desajustadas dos respetivos contextos e nem sempre associadas ao mérito.

Foram recentemente reorganizadas as estruturas de investigação; muitas instituições têm serviços específicos de apoio à transferência de resultados da investigação; várias instituições têm procedido a algumas reorganizações estruturais internas. Na área do ensino é, no entanto, necessária uma revisão profunda da organização curricular e das práticas pedagógicas, pois muitas até são contraditórias com o vulgarmente chamado “espírito de Bolonha” (a declaração de Bolonha é de 1999) e, apesar de propalarem termos como competências, empregabilidade, etc., limitam-se a fazer perdurar modelos clássicos que não promovem a autonomia, a inovação e a capacidade de resolução dos verdadeiros desafios societais atuais e futuros.

O início de 2020 trouxe mudanças abruptas cujas consequências têm ainda dimensões incalculáveis. Há cerca de um mês, o El País intitulava uma notíciaAdeus globalização, começa um mundo novo”. Em março, fecharam os campi e virtualizou-se toda a atividade passível de o ser. O ensino, a investigação, a gestão institucional, a atividade de consultadoria e peritagem passaram para o mundo digital. Em poucos dias, mudaram-se os paradigmas, as práticas, as relações internas e externas. Regressaram os estudantes a suas casas, incluindo os internacionais, e temos agora alguma incerteza acerca do seu regresso aos campi depois do Verão. Há estudos que indicam que nos Estados Unidos mais de 20% dos estudantes do ensino superior não tencionam regressar às universidades onde estudavam. Desde março, assiste-se a uma quebra muito significativa nas receitas das instituições e, em particular, no valor das propinas, que nalguns casos regista diminuições superiores a 25% do valor previsto.

Não há registo de uma mudança tão repentina na atividade do ensino superior. Operou-se em poucos dias a passagem de todo o ensino para regime não presencial. Na área da investigação e da transferência, um número significativo de estruturas reorientou a atividade para respostas a necessidades surgidas, da noite para o dia, na luta contra a covid-19, passaram a fazer testes de despistagem da doença, a fabricar álcool e gel, a construir viseiras com impressoras 3D e usando folhas de acetato que ainda existiam nos arquivos, etc. Permito-me destacar o que aconteceu na minha universidade, em que, além de investigação fundamental em diferentes áreas relacionadas com a pandemia e o seu impacto social, se envolveram, em articulação com o Centro Biomédico do Algarve (ABC), professores, investigadores e estudantes na realização de centenas de testes, na promoção de hábitos de higienização em populações mais carenciadas, na criação em Faro (com o apoio da Altice) de um centro de atendimento do SNS 24 assegurado por largas dezenas de alunos do Mestrado Integrado em Medicina. Outros exemplos poderiam ser dados.

Num momento de ténue e progressivo desconfinamento, reabrem-se laboratórios e centros de investigação, parte dos funcionários deixa o teletrabalho e regressa aos seus gabinetes e secretarias. Os docentes e os estudantes mantêm-se em contacto por plataformas a que tiveram que se habituar em tempo recorde e, pela primeira vez, grande parte das avaliações serão feitas em regime não presencial. Não ficarão certamente por aqui as consequências destes tempos.

A virtualização e o teletrabalho não deixarão de levar a reequacionar a necessidade de algumas atividades presenciais pré-covid-19 a todos os níveis. A digitalização, um eixo da estratégia política das instituições europeias, usufruirá desta mudança em moldes que ainda fugazmente se descortinam, mas deverá evitar que se acentuem as desigualdades. Um dos aspetos a considerar sempre terá que ser a salvaguarda de identidades, de privacidades e de informações, pois mal-usada e mal enquadrada esta digitalização pode ser vista como invasiva e como um excesso de vigilância. Por estes dias, o jornal Libération narrava a posição de um grupo de professores franceses, denunciando a intenção de instalar nos computadores dos estudantes um programa que os vigia horas antes dos exames.

O medo e a insegurança instalados na sociedade provocarão provavelmente alguma diminuição do número de alunos de formação pós-graduada e de alunos internacionais, com os respetivos impactos económicos que não serão despiciendos. Talvez este revés possa ser visto como oportunidade para maior atenção a outros públicos locais/nacionais diferenciados. Um passo significativo já tinha sido dado com a alteração das regras de acesso dos alunos dos cursos profissionais e artísticos especializados. Antes foram os concursos especiais e, em particular, o sistema de ingresso para maiores de 23 que ainda poderá ser afinado.

Uma área pouco explorada é a dos cursos modulares, breves, específicos para formação contínua ou reconversão de profissionais. Em suma, no que ao acesso diz respeito, além de se permitir um acesso mais equitativo de todos os que vêm diretamente do ensino secundário, a área dos chamados estudantes maduros ou não tradicionais carece de maior atenção no nosso ensino superior. Claro que esta mudança de público implica as respetivas mudanças de currículos, de abordagens pedagógicas e até de sistemas de avaliação, em que as aprendizagens formais, não formais e informais sejam realmente consideradas.

A mudança paradigmática que estes tempos parecem ter apressado assenta na imperiosa implicação da atividade das instituições nas necessidades existentes ou emergentes nos seus contextos, aprofundando os mecanismos de ciência aberta, revendo o que se entende por internacionalização e dando maior relevância a competências e saberes vindos do exterior e a movimentos como o da ciência cidadã. Trata-se aqui de reforçar a relação de confiança entre a academia e os seus parceiros, relação que as atividades desenvolvidas nestes últimos dois meses a que acima se aludiu vincaram indubitavelmente. Destes dois meses sobressaem, creio, a valorização social do saber e da ciência, a necessidade de maior apoio à formação especializada e à investigação teórica, por vezes esquecida em prol de algum imediatismo incompatível com a sua essência, e deve salientar-se que se reforçou a ideia de que o conhecimento científico deve ser basilar para a tomada de decisão política.

Em detrimento do desejo de neutralidade e de objetividade que se associa ao rigor do conhecimento, ao tecnicismo e que a hiperglobalização parecia impor, talvez seja necessário reforçar a empatia, a disponibilidade para a compreensão mútua entre o ensino superior e os seus parceiros. Tal não será possível sem que, de vez, se dê a devida relevância às competências transversais (soft skills), o que significa reforçar a intervenção das ciências sociais e humanas e das artes na formação académica, sendo exemplos a comunicação de ciência, a capacidade de expor apropriadamente saberes a públicos diferenciados e a necessidade de formação estética.

Num tempo em que renascem os nacionalismos, é necessário que o ensino superior se mantenha global, promovendo o multilateralismo. Há agora uma nova legitimidade social do ensino superior, que se afirmou inequivocamente como fonte de conhecimento

Pouca ou nenhuma mudança ocorrerá se não houver afirmação identitária clara das instituições e das respetivas missões, criando comunidades de afinidades, e, em simultâneo, com o que se pode chamar uma descolonização relativa à calibragem única das missões das instituições, que a competitividade exacerbada e os rankings promovem. É necessário abandonar a monoconceptualização do ensino superior, potenciando a colaboração ao invés da exclusiva competitividade. Talvez esta aparente utopia possa vir a ter laivos de realidade no âmbito das redes de universidades europeias que se estão a constituir.

Havendo mudança de paradigma e de conceitos, uma mera evolução, é, pois, imperioso praticar uma certa reterritorialização do ensino superior que a competitividade global desterritorializou. Exemplos dessa reterritorialização são a atenção dada à atividade translacional e à preocupação do impacto da atividade ao nível local/regional/nacional ou o respeito pela língua portuguesa para que não se imponham barreiras linguísticas de acesso ao saber, uma vez que é óbvio que essas barreiras comprometem o impacto e, no presente momento histórico, podem até comprometer a saúde pública. Trata-se de pedir ao ensino superior para contribuir para uma verdadeira justiça epistémica, aproveitando as alterações que atestam nos respetivos quadros epistemológicos e ontológicos.

Os grandes desafios para o ensino superior pós-covid-19, capitalizando as mudanças operadas nas últimas semanas, parecem ser o reequacionar de práticas, estratégias e missões, no quadro de uma sociedade e de uma economia digitais, em que os avanços da tecnologia e da ciência possam permitir uma educação melhor e mais inclusiva que responda aos reais desafios societais (e demográficos). Num tempo em que renascem os nacionalismos, é necessário que o ensino superior se mantenha global, promovendo o multilateralismo, ainda que haja alguma volatilidade geopolítica (veja-se o impacto do “Brexit” e o impacto do que já se denomina por mundo pós-China). Há agora uma nova legitimidade social do ensino superior que se afirmou inequivocamente como fonte de conhecimento. As suas missões, não apenas a 3.ª missão (formação contínua, empenho social, transferência), devem desenvolver-se no seio de uma implicação comunitária, termo retirado do projeto sobre o quadro europeu relativo ao envolvimento da comunidade no ensino superior (https://www.tefce.eu). Promovendo a credibilização, por via de uma reflexão profunda sobre a sua missão e as suas atividades, sendo local e global, deve o ensino superior ser um dos motores da mudança e, de forma ética e responsável, delinear visões de futuro que não se verá sem o reforço de recursos financeiros, logísticos e, sobretudo, humanos (pessoal docente, pessoal não docente e estudantes). Tantas mudanças que se veem aceleradas pela imposição das transformações provocadas pela covid-19 na nossa sociedade e no nosso modo de vida.

Manuel Célio Conceição - 19 de Maio de 2020, O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Professor da Universidade do Algarve; presidente "ex officio" do Conselho Europeu das Línguas