Escolha do curso superior reproduz desigualdades sociais

Alunos das classes mais favorecidas estão em cursos de maior prestígio como Medicina, Direito e Engenharias. Mais pobres inscrevem-se sobretudo nos politécnicos.

Mais de 40 anos depois do início da sua expansão, o sistema de ensino superior ainda não consegue garantir equidade na entrada nos principais cursos. É isso que indica um estudo do think tank da Fundação Belmiro de Azevedo Edulog, que é apresentado nesta quarta-feira. Os alunos de famílias mais favorecidas entram nos cursos de maior prestígio, ao passo que os mais pobres vão sobretudo para os politécnicos.

Para que um estudante seja capaz de ultrapassar esse obstáculo, a capacidade financeira da família é determinante, acrescenta o estudo A equidade no acesso ao ensino superior. Os cursos de maior prestígio têm, por norma, notas de ingresso mais elevadas, que constituem uma “barreira no acesso”, explica o coordenador do conselho científico do Edulog, Alberto Amaral – que é também presidente da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), o organismo público que regula os cursos superiores.

“Quem não tem possibilidade de ir para um colégio privado ou ter explicações, não consegue bater essa dificuldade [e atingir a médias exigidas]. É a isso que estamos a assistir neste momento”, avalia Alberto Amaral, recordando também fenómenos como o da inflação de notas internas no ensino secundário que acontecem particularmente em escolas privadas.

A análise do Edulog à equidade do acesso ao ensino superior é feita com base em dois indicadores: as qualificações dos pais e mães dos estudantes e a percentagem de alunos que recebem bolsas de acção social – que são em norma os mais desfavorecidos – em cada curso.

Um dos exemplos mais claros da selectividade socioeconómica no acesso aos cursos do ensino superior observa-se na área da Saúde, onde 73,2% dos estudantes de Medicina são filhos de pais e mães que concluíram o ensino superior, ao passo que 73% dos estudantes de Enfermagem são filhos de pais com qualificações inferiores – ensino secundário ou menos.

Por exemplo, na Universidade do Minho – a única universidade que tem tanto o curso de Medicina como o de Enfermagem – quem estuda para ser médico vem de agregados familiares bastante mais qualificados (56% das mães têm o ensino superior) do que os colegas de Enfermagem (onde apenas 20% das progenitoras têm este nível de qualificação).

A conclusão é semelhante se forem comparados os alunos de Medicina da Universidade de Coimbra (63% de mães com o ensino superior) e os da Escola Superior de Enfermagem da mesma cidade (24%). O fenómeno é semelhante quando se comparam também as universidades de Lisboa e do Porto com as escolas de enfermagem destas cidades.

A única excepção é a Universidade da Beira Interior, na Covilhã, onde apenas 20% dos pais e mães dos estudantes de Medicina têm qualificações superiores. Este é um dos cursos de formação médica mais recentes do país. Foi criado no ano 2000.

Universidades vs politécnicos

Esta análise é confirmada quando se observa o número de bolseiros de acção social em cada curso superior. Apenas 15% dos estudantes inscritos em Medicina vêm de agregados familiares mais pobres. Pelo contrário, 40,4% dos alunos de Enfermagem recebem apoio do Estado para estudar.

Nos dez cursos com notas de entrada mais alta no ano passado estão três de Medicina. Os restantes são de Engenharia ou áreas afins.

O estudo do Edulog compara outras áreas como as ciências jurídicas, farmácia e engenharias, para concluir que, por norma, os cursos que estão no sistema universitário têm alunos com origens socioeconómicas mais privilegiadas. Nas universidades, menos de 30% (28,1%) são bolseiros. Nos politécnicos esse valor é superior em quase dez pontos percentuais (37,4%).

A selectividade no acesso aos cursos superiores de maior prestígio “não é exclusivamente portuguesa”, sublinha Alberto Amaral. O tema está de resto bastante estudado internacionalmente. Os académicos chamam-lhe “maximally mantained inequality” (“desigualdade máxima mantida”). Isto é, os estudantes dos níveis mais favorecidos estão melhor colocados para tirar proveito das vantagens oferecidas pela expansão dos sistemas de ensino.

Ou, “de um modo um pouco brutal”, acrescenta Amaral, “as classes mais baixas só podem tirar vantagem das oportunidades oferecidas pela expansão quando as necessidades das classes mais altas estiverem completamente satisfeitas”.

Mesmo tendo o sistema de ensino superior (globalmente falando e sem fazer distinção de cursos) lugar para todos os candidatos, os actores socioeconomicamente favorecidos “usam as suas vantagens para assegurar que têm o mesmo nível de qualificação” do que outros, mas que esta é “qualitativamente melhor” do que a da generalidade das pessoas. Ou seja, escolhem cursos mais prestigiados.

Não era isso que se esperava. A expansão dos sistemas educativos devia ter reduzido as desigualdades de acesso dos estudantes provenientes de diferentes níveis socioeconómicos. “Porém, isso não se verificou”, conclui o relatório do Edulog, que é apresentado nesta quarta-feira.

Este estudo é o pretexto para um debate, que acontece em Matosinhos, onde estarão presentes, entre outros, o antigo secretário de Estado do Ensino Superior, José Ferreira Gomes, e o presidente da Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado, João Redondo.

No acesso ao ensino superior para o próximo ano lectivo – cujo concurso começa no próximo dia 17 de Julho – o Governo vai permitir que os cursos com notas de acesso iguais ou superior a 17 valores aumentem o número de vagas em 5%. A decisão foi tomada com base num relatório feito por um grupo de trabalho nomeado pelo ministério da ciência e ensino superior, que foi publicado esta terça-feira.

Alberto Amaral não acredita, contudo, que a medida resolva o problema de equidade que é sublinhada no relatório do Edulog. “Vai ter algum impacto, mas não será o suficiente”, antecipa o presidente da A3ES, considerando que o patamar fixado para que seja possível aumentar o numerus clausus (17 valores) “é muito elevado”.

Samuel Silva - 26 de Junho de 2019 Público