Sem estabilidade laboral vai ser difícil pôr portugueses a ter mais filhos

Ter poucos filhos será cada vez mais “aceitável, legítimo e desejável”, segundo especialistas em demografia. Apesar disso, é possível atenuar a discrepância entre os filhos que os portugueses desejam ter e os que efectivamente têm. Para tal, era preciso que os apoios não se limitassem aos primeiros anos de vida das crianças.

Segurança e estabilidade laboral. Salários condignos. Creches pagas, bons transportes, boas habitações, proximidade dos avós, apoios económicos que não se eclipsem ao fim dos primeiros anos de vida da criança. A receita para conseguir desacelerar a quebra na natalidade em Portugal foi há muito prescrita. Para os especialistas, não será possível conseguir que os portugueses tenham mais filhos enquanto o país persistir numa cultura de trabalho intensiva, com jornadas longas e horários tardios, em que, como descreve a socióloga Vanessa Cunha, os pais “se continuam a sentir fortemente culpabilizados e censurados por terem de faltar e de gozar as licenças a que têm direito”.

Depois de ter batido no fundo no auge da crise, com apenas 82.367 crianças nascidas em 2014, Portugal registou, nos últimos cinco anos, uma ligeira recuperação da natalidade. Os 87.364 bebés nascidos no ano passado, a ter em conta os números do rastreio neonatal (vulgo “teste do pezinho"), coordenado pelo Instituto Nacional Doutor Ricardo Jorge, confirmaram a subida da curva dos nascimentos. Mas o cenário está longe de ser risonho, nomeadamente porque esta subida poderá traduzir um mero ajustamento pós-crise.

“Houve uma tentativa de recuperação dos nascimentos que foram perdidos nos anos anteriores, mas a tendência é para a estabilização dos indicadores em baixa, porque efectivamente as pessoas não vão passar a ter muitos mais filhos”, interpreta Vanessa Cunha, investigadora no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. “Houve um adiamento dos nascimentos. Estamos a repor os níveis pré-crise”, corrobora Ana Fernandes, presidente da Associação Portuguesa de Demografia.

Em Portugal, como no resto da Europa, as prioridades das mulheres em idade de ter filhos são completar o curso, comprar um carro e uma casa, viajar e só depois ter um filho. “O problema em Portugal é que, como ganham muito mal, são muito menos as mulheres que conseguem atingir estes objectivos ou então demoram muito mais tempo a atingi-los”, explica o sociólogo Paulo Machado, que foi com uma equipa para o terreno estudar a natalidade em cada um dos municípios portugueses entre 1994 e 2013. O que o sociólogo também destaca é que, genericamente, os homens querem ter filhos mais cedo porque a carga de criar uma criança ainda é suportada sobretudo pelas mulheres em Portugal. “Os homens encaram a reprodução mais por impulso enquanto as mulheres são mais racionais”, sintetiza.

Apertar o cinto dos filhos não

No último inquérito à fecundidade, cujas conclusões recuam a 2013, à pergunta sobre quantos filhos desejavam as pessoas ter num cenário ideal, isto é, despido de constrangimentos ao exercício da parentalidade, as respostas variavam entre dois e três. Contudo, o número médio de filhos que as mulheres tinham ou pensavam vir a ter era inferior. Em média, as pessoas tinham 1,03 filhos e pensavam vir a ter no máximo 1,78. “As condições de bem-estar passaram a ter uma importância maior. Apesar de os dois filhos poderem manter-se como cenário ideal, é possível que, entre os mais jovens, se sinta já uma certa normalização das famílias com menos filhos. Ter-se poucos filhos tenderá a ser encarado como um comportamento aceitável, legítimo e desejável”, admite Vanessa Cunha, antecipando uma tese que admite ver corroborada no novo inquérito à fecundidade cujos resultados deverão ser conhecidos em Dezembro.

“A precarização e a insegurança laboral são as primeiras coisas a pôr a paternidade em suspenso"

Vanessa Cunha, socióloga

Num cenário em que os casais ainda não têm filhos, a precariedade laboral e a instabilidade económica têm um impacto significativo na decisão de adiar a paternidade. “Apertar o cinto pode não nos custar. Agora, o dos nossos filhos é que não”, sublinha Jorge Malheiros. Mas o especialista em geografia da população destaca o facto de, nos últimos indicadores de fecundidade, Portugal estar agora “à frente da maior parte dos países do Sul da Europa” nesta que é, todavia, “uma competição de fraquinhos”.

Portugal mantém-se, ainda assim, distante da realidade de países como a Alemanha, onde é grande a proporção de mulheres que não chegam a fazer a transição para a maternidade. “Portugal é dos países que coloca menos dinheiro no cesto das crianças e do apoio às famílias, mas, mesmo na Alemanha, onde o Estado social é mais dotado do que o nosso, houve uma polarização de comportamentos reprodutivos por parte das famílias: as que têm muitos filhos convivem com o cada vez maior número de mulheres que decidem não os ter porque sentem que não têm direito a manter-se na sua carreira profissional. Isto ocorreu porque as políticas públicas alemãs apostavam em medidas que retiravam as mulheres do trabalho. Elas estudavam, qualificavam-se e depois, quando eram mães, tinham literalmente de ir para casa cuidar dos filhos”, aponta a socióloga, para acrescentar que o modelo francês de apoio à natalidade foi mais bem-sucedido porque, ao invés de mandar as mulheres para casa, apostou “na criação de uma rede pública e gratuita de equipamentos de qualidade”.

E em Portugal que medidas resultariam? “Em primeiro lugar, é preciso que as pessoas sintam segurança e estabilidade laboral, com remunerações condignas”, prioriza Vanessa Cunha, apontando ainda a necessidade de pôr fim a uma “cultura de trabalho marcada por jornadas longas e horários muito tardios e em que as pessoas continuam a ter que mostrar ‘o amor à camisola’” para serem tidos como bons trabalhadores.

“A precarização e a insegurança laboral são as primeiras coisas a pôr a paternidade em suspenso”, insiste, apontando ainda a necessidade de o Estado não deixar os pais sozinhos, passados os primeiros anos de vida da criança. “O abono de família, por exemplo, tornou-se muito restritivo e sujeito a critérios de elegibilidade que, durante a crise e de um ano para o outro, deixaram 500 mil crianças de fora”, exemplifica, para acrescentar que há aqui um “vínculo de confiança” que se quebrou e que urge recuperar. “Os pais têm de acreditar que o Estado está disposto a partilhar com eles a responsabilidade pela parentalidade.”

Natália Faria e Alexandra Campos - 21 de Janeiro de 2020, Público