Há margem para melhorar emprego público, mas “não é possível ignorar” salários
Especialistas ouvidos pelo PÚBLICO concordam que há margem para melhorar a atractividade do emprego público, mas defendem que os salários são determinantes nesse processo.
A Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) alertou recentemente para a dificuldade de estender à generalidade dos funcionários públicos a recuperação do tempo de serviço dada aos professores. Em alternativa – defende –, há outras medidas a ter em conta, como as regras de progressão, a avaliação de desempenho ou o teletrabalho, que podem melhorar a atractividade do emprego público. Os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO concordam que é possível recorrer a várias estratégias, mas alertam que a componente remuneratória é central nesse processo.
“Os graus de desmotivação são muito superiores ao que eram há 10 ou 20 anos e parte passa pelo sentimento de as pessoas serem mal remuneradas. Não é possível ignorar a parte remuneratória”, destaca César Madureira, professor no ICSTE – Instituto Universitário de Lisboa e investigador na área da gestão pública.
“As carreiras e remunerações são um problema central. É preciso dar sinais de que os funcionários públicos são fundamentais”, destaca, acrescentando que, a par de medidas estruturais, é preciso tomar medidas mais imediatas.
Madureira lembra que, ao longo dos últimos 25 anos, os raros aumentos não têm permitido ganhos de poder de compra para a maioria dos trabalhadores do Estado.
Embora alguns estudos apontem para a importância da componente não remuneratória na capacidade de atracção de recursos humanos, Miguel Lucas Pires, professor na Universidade de Aveiro e director da licenciatura em Administração e Gestão Pública, defende que não se pode fugir do “aspecto nuclear” que são os salários.
“Não há fórmulas miraculosas, mas não se pode tornar as carreiras mais atractivas sem mexer nas remunerações”, defende, acrescentando que, na sua perspectiva, este continua a ser o “factor essencial”.
Miguel Lucas Pires concede que há outras vias que podem ajudar a atrair e reter talento no Estado. Uma delas – tal como a UTAO identifica – é o teletrabalho e a conciliação da vida privada e familiar com a vida profissional.
“Este, porventura, pode ser um daqueles factores extra-remuneratórios que, para algumas pessoas, pode fazer sentido, sobretudo para as que vivem distantes do local de trabalho, como acontece nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto”, destaca.
Outra questão tem a ver com a adaptação do regime legal de algumas carreiras: “Temos um regime formatado para as carreiras do regime geral e há particularidades a que a lei geral não responde, nomeadamente quanto a horários de trabalho e flexibilidades."
Sem medida equivalente, igualdade fica em causa
No relatório em que calculou o custo da recuperação do tempo de serviço dos docentes (469 milhões de euros brutos e 202 milhões de euros líquidos), a unidade liderada pelo economista Rui Baleiras reconheceu não ser capaz de calcular o impacto de uma medida equivalente para as restantes carreiras, nem de identificar com clareza o universo de trabalhadores a abranger.
Essa análise é condicionada pelas decisões que têm sido tomadas e que abrangem apenas uma parte dos trabalhadores, como é o caso do acelerador de progressões, ou pelas negociações que estão a ser feitas carreira a carreira. Ainda assim, a UTAO desenhou uma medida que obrigaria a dar a todos os trabalhadores não docentes um crédito de 12,8 pontos na avaliação de desempenho já em 2025, repondo assim a equidade entre todos.
“Não sendo viável prever com rigor razoável os impactos financeiros de uma medida difícil de desenhar para compensar as restantes carreiras da função pública, vale a pena o país porfiar na aplicação de uma qualquer medida com esta intenção?”, questiona a UTAO.
Em alternativa, recomenda que se olhe para “os obstáculos estruturais que as Administrações Públicas têm em cativar talento humano” e para os “possíveis remédios”, que incluem as tabelas remuneratórias, as regras de progressão, o teletrabalho ou benefícios não pecuniários.
“Uma coisa é dizer, vamos beneficiar os professores porque durante o período da troika estiveram sujeitos a determinados constrangimentos a que as outras carreiras não estiveram ou estiveram em menor medida. Mas não foi assim” Miguel Lucas Pires, professor na Universidade de Aveiro
Miguel Lucas Pires faz notar que, se o Governo optar por não estender a solução dos professores aos restantes trabalhadores do Estado, pode, no limite, “gerar-se um problema de desigualdade”.
“Uma coisa é dizer: vamos beneficiar os professores porque durante o período da troika estiveram sujeitos a determinados constrangimentos a que as outras carreiras não estiveram ou estiveram em menor medida. Mas não foi assim”, sustenta.
Também os sindicatos já deixaram claro que se o Governo quiser tratar com justiça todos os trabalhadores, terá de os compensar de forma equivalente aos docentes.
As propostas da UTAO para melhorar atractividade
Entre as medidas alternativas identificadas pela UTAO para melhorar a capacidade de atracção e de retenção de pessoas no emprego público está a forma com os governos têm gerido as tabelas remuneratórias nos últimos anos.
“Demasiadas vezes, as actualizações das tabelas remuneratórias têm sido usadas para promover a convergência dos salários inferiores e dos salários superiores”, critica a unidade que dá apoio aos deputados a Assembleia da República, lembrando que há outros instrumentos mais eficazes de redistribuição de rendimentos, desde o IRS, à provisão a preços subsidiados de bens e serviços com peso nas despesas das famílias e às prestações sociais.z Este problema é agravado pelo facto de as regras de progressão remuneratória em muitas carreiras – tanto as que exigem menos qualificações como as mais qualificadas – perspectivarem “uma melhoria modesta de salários líquidos ao longo da vida activa”.
Além disso, as regras são “tão rígidas que nem é possível o recrutamento valorizar a experiência e as soft skills, ocorram os recrutamentos no início, no meio ou próximo do fim das vidas activas”.
Quando fazem escolhas profissionais, nota a equipa de Rui Baleiras, os trabalhadores pensam a médio e longo prazo: não interessa apenas o salário líquido que se vai ganhar de imediato, interessa perspectivar a sua evolução profissional, no mínimo, a cinco anos.
A UTAO critica ainda a forma como a avaliação de desempenho se faz e alerta para “o conflito de interesses inerente ao duplo papel, na mesma pessoa, de gestor e avaliador”. Isso faz com que sejam “muito frequentes as práticas de rodagem das menções ‘Excelente’ e ‘Muito Bom’ em anos sucessivos por entre os vários trabalhadores subordinados ao mesmo chefe e avaliador”.
A UTAO entende que devem ser levantadas as restrições previstas nas leis orçamentais e nos decretos de execução orçamental que impedem a "contratação dos melhores", mesmo respeitando os tectos de despesa aprovados anualmente pela Assembleia da República.
Para a unidade, há ainda margem para tomar medidas noutros domínios menos óbvios. Um benefício importante “que não custa dinheiro aos contribuintes e é valorizado por muitos” é o teletrabalho. A adopção de regimes de trabalho flexíveis, sublinha-se no relatório da UTAO, está sujeita a constrangimentos burocráticos, quando a sua utilização traz vantagens na conciliação, no desenvolvimento económico e na distribuição territorial da população.
A unidade de apoio ao Parlamento propõe ainda que o sector público acompanhe a tendência dos privados nos pacotes de benefícios pecuniários e não pecuniários oferecidos aos trabalhadores. Se isso não acontecer, antecipa, as Administrações Públicas “estão condenadas a perder os melhores candidatos saídos das academias do ensino superior e a perder os profissionais mais talentosos que estejam nas suas fileiras”.
Raquel Martins, 21 de Julho de 2024, Público