ADSE só sobrevive se entrarem mais beneficiários?

O braço-de-ferro com os grupos privados da saúde causou inquietação nos beneficiários e relançou a discussão sobre o futuro da ADSE. A resposta é dada por especialistas e pelo Tribunal de Contas: tem que entrar mais gente para garantir a sustentabilidade

Por que razão os grupos privados da saúde não aceitam pagar os 38 milhões à ADSE? A ADSE é sustentável? A ADSE pode ser gerida pelos beneficiários sem intervenção do governo? O sistema pode ser alargado? Estas foram algumas das perguntas lançadas esta segunda-feira ao fim da tarde numa sessão de esclarecimento sobre o sistema de saúde dos funcionários públicos organizada pela Associação 30 de Julho e a APRE - Associação de Reformados Pensionistas e Idosos que, numa altura em que os privados estão a fazer um braço-de-ferro com a ADSE, entenderam esclarecer os associados sobre a polémica.

Maria das Dores Ribeiro, 70 anos, economista reformada foi um dos contribuintes da ADSE que se deslocou ao Picoas Plaza em Lisboa, para esclarecer as suas dúvidas e também dar a sua opinião. Vê a negociação como o melhor caminho para evitar que os privados rompam as convenções com a ADSE, como a CUF, a Luz Saúde e os Lusíadas ameaçaram fazer a partir de meados de abril. Mas também concorda que se limite os preços dos serviços convencionados. "Não se pode pagar milhões, temos de garantir a sustentabilidade."

Ana Raquel Alves, 68 anos, consultora jurídica reformada, entra na conversa para dizer de sua justiça: "Temos que negociar. Mas a verdade é que a ADSE também não está a ser bem gerida. Tem que se contratar quadros com conhecimento da área."

Na mesa que dirige a sessão de esclarecimento, Rosa Maria Simões, começa por dizer que as ameaças dos prestadores de saúde convencionados criou "um grande alarme". E criticou os grupos de saúde por terem vindo com ameaças para a praça pública quando lhes cabia negociar um a um. "Não são membros sindicais. Cada um celebrou uma convenção."

Mas rapidamente passou para uma factualidade: a ADSE resulta das contribuições dos seus membros mas é gerida pelo governo. "Pagamos tudo e ainda damos o excedente para o governo guardar. Acredito na sustentabilidade do sistema, com ou sem governo vamos ter ADSE, mas tem que haver regras. É isso que dá garantias, a responsabilidade de quem usa e uma gestão profissional."

"Compreendo a expectativa de quem gostaria de entrar para a ADSE, mas estou preocupada sobretudo com a sustentabilidade do sistema"

Rosa Maria Simões referiu ainda que o conselho de supervisão da ADSE fez um estudo sobre a sustentabilidade da ADSE que aponta para o alargamento por etapas a outros beneficiários - os primeiros a entrar seriam os funcionários públicos com contratos individuais. "Não piora o sistema, antes melhora, porque são pessoas mais jovens. Foi feita inclusive uma proposta de diploma, mas o governo tem lá o documento desde maio de 2018 e não diz nada."

A ministra da Saúde foi questionada a este propósito no sábado passado pelo Jornal de Notícias e deu uma resposta ambígua: "Essa questão tem a ver com a sustentabilidade do sistema que, atualmente, é inteiramente suportado pelos funcionários públicos. Há funcionários públicos que têm contrato individual de trabalho que não têm acesso, como os trabalhadores do setor empresarial da saúde e das autarquias locais ou aqueles que saíram da ADSE e não podem regressar. Compreendo a expectativa de quem gostaria de entrar para a ADSE, mas estou preocupada sobretudo com a sustentabilidade do sistema", afirmou Marta Temido.

Tribunal de Contas: sustentável até 2014

A sustentabilidade do sistema. Não é só a guerra com os privados, há uma questão de fundo e tem a ver com a capacidade de sobrevivência da ADSE. O Tribunal de Contas (TC), por exemplo, traça um futuro preocupante se não entrarem novos contribuintes: "É errado pressupor que a ADSE é sustentável, a prazo, na sua configuração atual. Com base num estudo realizado por entidade independente, a pedido da ADSE, a ADSE não é sustentável para além de 2024, apresentando défices a partir de 2019. Se o crescimento anual da despesa for superior ao considerado neste cenário, a ADSE pode já apresentar défices a partir de 2017 e não ser sustentável em 2020."

E vai mais longe ao afirmar que "o alargamento da base de quotizados a novos quotizados líquidos é condição sine qua non para a sobrevivência, a prazo, da ADSE (recorde-se que, atualmente, por cada quotizado que efetua descontos existem 1,5 beneficiários não contribuintes)" - os filhos dos funcionários públicos com idades até 26 anos, bem como cônjuges sem rendimentos não pagam.

Este vaticínio sobre a sustentabilidade da ADSE está expresso na auditoria do Tribunal de Contas de 2016, que dá seguimento às recomendações do relatório do ano anterior e onde se consta que "praticamente nenhuma avançou".

O alargamento do sistema, nomeadamente aos trabalhadores da função pública com contratos individuais, é pois uma das soluções preconizada pelo Tribunal de Contas, bem como pelos Conselhos Diretivo e de Supervisão da ADSE. As propostas, contudo, ainda não encontraram feedback político. "A ADSE é insustentável a longo prazo (igual/superior a 10 anos)", diz o TC. E, apesar do cenário traçado, acrescenta, "não foram desenvolvidas quaisquer diligências no sentido de adequar os pressupostos de abrangência populacional do sistema, do seu mecanismo de financiamento e das condições de cobertura atuais, ajustando-os por forma a assegurar a sustentabilidade da ADSE".

A auditoria prossegue: "Quanto maior for o aumento do universo de quotizados, maior é a garantia de sustentabilidade da ADSE, considerando a maior dispersão do risco e a tendência atual de diminuição desse universo pela redução/estabilização do número de trabalhadores do setor público."

"Quanto maior for o aumento do universo de quotizados, maior é a garantia de sustentabilidade da ADSE"

O tribunal alerta que é preciso que esse aumento de quotizados tenha em conta o rejuvenescimento do sistema - exatamente como defendeu Rosa Maria Simões na sessão de esclarecimento. E porque é que é preciso gente mais nova? Porque, quanto mais velhos são os contribuintes mais representam em termos de despesa.

Eugénio Rosa, economista da saúde e membro do conselho diretivo da ADSE, sublinha e este propósito, que as despesas de saúde com um contribuinte com 60/70 anos é sete vezes superior ao de um de 30 anos. Com a agravante de os aposentados, além representarem mais despesa, representarem também menos contribuição - como as reformas são mais baixas do que os salários, o desconto diminui. Em 2014, a população da ADSE tinha uma idade média de 45,7 anos. "Dos trabalhadores e aposentados titulares, que são aqueles que contribuem para a ADSE, mais de 51% tem mais de 50 anos", acrescenta Eugénio Rosa ao DN.

O sistema pode mesmo acabar?

Também Bagão Félix chama a atenção para a necessidade de abrir as contribuições: "A ADSE vai terminar, é uma questão de prazo na medida em que é um regime de proteção da saúde fechado, ou seja, sem entradas (ou cada vez menos). Daqui a uns anos deixa de existir porque já não há beneficiários."

Por enquanto, sublinha, os resultados ainda são positivos, mas há que ter em conta um fator muito importante: "O que vai acontecer é que a população beneficiária, os tais 1, 2 milhões, tendem a envelhecer, portanto a aumentar os encargos com proteção na saúde. Por outro lado, as receitas não vão ser insuficientes porque resultam de um grupo cada vez mais fechado", afirma o ex-ministro das Finanças e da Administração Pública, bem como da Segurança Social e do Trabalho.

Eugénio Rosa tem uma visão menos catastrófica sobre um eventual fim da ADSE, considerando que a abertura a novos trabalhadores da função pública será suficiente para a sua sustentabilidade. A título de exemplo, refere que no ano passado o sistema teve um saldo positivo de 76 milhões de euros. No entanto, está consciente de que é preciso criar mecanismos apertados de combate à fraude, "que está a levantar muitas resistências, como se vê".

O economista fala sobretudo do braço de ferro que opõe a ADSE aos grupos de saúde privados, a quem o Estado exige a devolução de mais de 38 milhões de euros por sobrefaturação de medicamentos e próteses. Uma guerra que já levou a CUF, a Luz Saúde e os Lusíadas a ameaçarem denunciar as convenções.

Mas é também a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), que reúne estes gigantes da saúde, a alertar para a necessidade de alargamento do sistema. Num estudo recente encomendado pela APHP à Deloitte, refere-se que a ADSE precisa de 80 mil novos funcionários nos próximos cinco anos para compensar as saídas.

Esse estudo aponta ainda o envelhecimento da população contribuinte, mostrando que em 2022 um terço dos beneficiários terá mais de 70 anos se não se registarem novas entradas. Nesse sentido, propõe o alargamento dos contribuintes, bem como a criação de regras para moderar o consumo - os utentes da ADSE consomem em média mais 26% do que os utentes dos seguros e para isso muito contará o facto de não haver limites.

Chegou a falar-se de limitar o número de consultas do regime livre a 24 por ano, mas Eugénio Rosa entende que essa também não é a questão, tanto mais que os beneficiários poderiam depois recorrer aos convencionados, onde o preço das consultas é de 3,99 euros.

A incómoda gestão pelo Estado

A gestão do sistema é outro dos assuntos que preocupa os contribuintes e o Tribunal de Contas. "A eventual extinção da ADSE, que poderá ser uma consequência da uma gestão imprudente pelo Estado dos dinheiros que os quotizados/financiadores lhe confiam, que ponha em causa a sua sustentabilidade, implicará um aumento da despesa pública em saúde, considerando o aumento da procura de cuidados de saúde no Serviço Nacional de Saúde, no continente a nas Regiões, e a alternativa a essa extinção implicará, também, um aumento da despesa pública pela reposição do financiamento público do sistema. Deste modo, a boa administração dos dinheiros dos quotizados/financiadores interessa não só a estes, mas também aos contribuintes em geral e utentes do Serviço Nacional de Saúde", lê.-se na auditoria do TC.

O facto de ser o Estado a gerir os dinheiros da ADSE foi um dos temas debatidos na sessão de esclarecimento. Com os associados a mostrarem-se desagradados com a situação. Jorge Sá, presidente da mesa da Associação 30 de Julho entende que um sistema solidário em que os contribuintes pagam entre si, "uma sociedade de pessoas e para pessoas" devia funcionar como uma mutualidade, onde os lucros fossem aplicados no desenvolvimento da organização.

A APRE deverá fazer sessões de esclarecimento com os seus associados em Coimbra e no Porto, em dtas ainda a anunciar. E enquanto isso, a Comissão Parlamentar de Saúde vai começar a ouvir intervenientes nesta polémica para esclarecer o braço-de-ferro da ADSE com os grupos privados. Bem como a sua sustentabilidade.

Graça Henriques - 25 Fevereiro 2019 — Diário de Notícias