Cientistas em estado de “choque” com a revisão do Estatuto de Bolseiro aprovada pelo Governo

O pacote legislativo sobre ciência aprovado no último Conselho de Ministros é fortemente criticado pela comunidade científica

"Para nós foi um choque porque continua a ser perpetuada a situação das bolsas como uma carreira paralela". É assim que Sandra Pereira, presidente da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), contactada pelo Expresso, reage à revisão do Estatuto de Bolseiro de Investigação Científica aprovada pelo Governo no Conselho de Ministros de 21 de fevereiro, no âmbito de um pacote legislativo relacionado com a ciência e o ensino superior.

Sandra Pereira recorda que o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, "tinha dito à ABIC que ia manter apenas as bolsas de formação para a obtenção do grau de doutoramento, mas na verdade não há nada de novo nesta revisão, mantem-se tudo como estava à exceção do limite de três anos para uma bolsa de pós-doutoramento, porque antes podia ir até aos seis anos". Mesmo assim "não há um limite para o número de bolsas a que o doutorado pode concorrer, ou seja, se já teve uma bolsa de pós-doc pode concorrer a outra, quando faria sentido ter um contrato de trabalho".

Na segunda-feira, 25 de fevereiro, a ABIC divulgou um comunicado sobre a revisão do Estatuto de Bolseiro em que critica o facto de o seu anúncio "surgir no final da legislatura, que no que toca à ciência não cumpriu nem com metade do que já legislou". Por outro lado, a ABIC sublinha que a revisão foi feita sem o Governo "ter dialogado com os bolseiros, o que só pode merecer o nosso protesto".

E merece o "repúdio" da ABIC o facto de a revisão do Estatuto de Bolseiro referir que o seu objetivo é o de "reduzir a duração temporal das bolsas de pós-doutoramento e limitar as condições da sua atribuição, dedicando-as exclusivamente para efeitos de formação pós-doutoral e, assim, reforçando o contrato de trabalho como regime regra para a constituição de vínculos" com investigadores doutorados.

O regresso das bolsas pós-doc

"É com total perplexidade que, após continuadas declarações do Sr. Ministro Manuel Heitor da sua firme intenção de acabar com esta tipologia de bolsas, vermos agora anunciado o seu regresso e não a sua substituição por contratos de trabalho como prometido", acrescenta a associação. "A ABIC não pode aceitar que tudo fique na mesma" e argumenta que "não é alargando a abrangência das bolsas que se combate aa precariedade".

Entretanto, Gonçalo Leite Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup), afirma ao Expresso que o pacote legislativo aprovado pelo Governo "é uma surpresa e uma oportunidade perdida". O pacote inclui não só a revisão do Estatuto de Bolseiro de Investigação Científica como a Lei da Ciência, que revê e moderniza o regime jurídico das instituições de investigação, e a regulação do ensino à distância.

A Lei da Ciência "é precária em relação às instituições de investigação, porque consagra os 21 Laboratórios Colaborativos já criados como associações privadas sem fins lucrativos, o que é contra a transparência dos sistemas científico, tecnológico e do ensino superior, como o Tribunal de Contas já alertou", assinala o presidente do Snesup. Estes laboratórios recentemente criados juntam instituições do ensino superior, centros de investigação, empresas, autarquias, associações e orgnaizações regionais.

Precariedade continua

A precariedade estende-se à revisão do Estatuto de Bolseiro, "porque não está incluída na Carta Europeia de investigador, que defende que as instituições científicas devem ter um plano de carreiras e um conjunto de rácios de pessoal de carreira e de pessoal contratado a termo. Mas nada disto está previsto nesta revisão". Gonçalo Leite Velho recorda que "havia um compromisso do ministro Manuel Heitor de acabar com as bolsas de pós-doc através da reallização de contratos de trabalho, como acontece na generalidade dos outros países da Europa e obedece às práticas da própria OCDE". Reduzir as bolsas de pós-doc a três anos "já acontecia antes, só que ao fim desses três anos havia uma renovação por mais três". Portanto, "é apenas legitimar o que já existia e acaba por ser uma revisão cosmética do Estatuto de Bolseiro".

Por outro lado, o presidente do Snesup diz estar "um pouco espantado com o balanço que foi feito recentemente sobre um ano de aplicação das recomendações da avaliação da OCDE aos sistemas científico, tecnológico e do ensino superior portugueses". Assim, "o Snesup não foi consultado para a revisão do Estatuto de Bolseiro, há uma falha de diálogo social do Ministério da Ciência".

Em outubro de 2018 "reunimos com o ministro Manuel Heitor, que prometeu que o Snesup seria consultado, mas na apresentação daquele balanço em Lisboa, no dia 22 de fevereiro, nem sequer fomos convidados". Este balanço "tem muito poucos elementos quantificáveis, o que entra em contraste como o que recomendava a própria avaliação da OCDE", destaca Gonçalo Velho.

Carta aberta assinada por 650 investigadores

Entretanto, uma carta aberta que defende "uma verdadeira carreira científica que premeie o mérito mas também possibilite a necessária estabilidade dos investigadores sénior", assinada por mais de 650 cientistas, foi entregue ao ministro Manuel Heitor, com conhecimento para Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Os subscritores incluem bolseiros, investigadores júnior e sénior, docentes universitários, diretores de unidades e centros de investigação e um Prémio Pessoa.

A carta critica a afirmação recente de Manuel Heitor, numa entrevista ao "Público", de que há pleno emprego entre os cientistas, demonstra que a realidade do emprego científico em Portugal é bem diferente e diz que "a atual estratégia de emprego científico leva ao emagrecimento do corpo de investigadores independentes, líderes de equipa e de linhas de investigação, que na sua generalidade constituem a base da produção científica nacional".

Os signatários chamam a atenção "para a necessidade de reformular o Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN), com a criação de uma verdadeira carreira de investigação científica", que consideram "atualmente inexistente". A situação dos investigadores, "sem carreira nem estabilidade e muitos sem emprego depois de 20 anos de trabalho, é grave", sublinha a carta aberta, criticando que "à oportunidade de rever o SCTN se tenha respondido com uma estratégia atabalhoada de perpetuação da precariedade".

Nesta legislatura, "as oportunidades para os investigadores auxiliares, principais e coordenadores foram manifestamente limitadas, tendo sido dado um ênfase claro aos investigadores júniores, recém-doutorados". A carta aberta insiste que os cientistas não precisam "de medidas populistas nem de aparentes soluções que não fazem mais do que perpetuar um sistema viciado em precariedade".

Virgílio Azevedo - Expresso on line - 26.02.2019