O CDS deixou de acreditar no mérito, se é que alguma vez o fez. O que é constante na sua preocupação é apenas isto: que haja alguma coisa que não se possa comprar.

Há poucas semanas escrevi nesta página que “temos ainda, no nosso país, duas visões muito distintas sobre a chegada à Universidade e, de forma geral, ao Ensino Superior”. Descrevi a primeira visão como “já temos doutores a mais” e a segunda como “precisamos de muito mais gente na universidade”, mas provavelmente os defensores de uma e da outra prefeririam ser chamados de “meritocráticos” e “universalistas”.

Na primeira visão, a universidade não deve servir para formar uma elite, mas para receber a elite que já existe “naturalmente” na sociedade, supostamente comprovada pelo mérito. Na segunda visão, de que me reclamo, devemos alargar ao máximo de gente possível o melhor ensino superior que o país consiga estabelecer, e por duas razões. A primeira, de princípio, é porque para nós uma sociedade justa é aquela em que todos podemos realizar o nosso potencial independentemente das condições sociais de origem. A segunda razão, pragmática, é porque Portugal precisa: nas décadas que aí vêm o nosso país necessitará de uma população ativa muito mais qualificada, que lhe permita enfrentar os desafios da automação, da globalização e da especialização da economia. Temos de ter universidades muito melhores, com um grau de exigência bastante maior, e não podemos continuar apenas com metade dos nossos jovens a entrar no ensino superior quando países como a Alemanha aboliram as propinas na intenção de terem tantos dos seus jovens na universidade quanto possível.

Assim estávamos até ontem, quando o CDS decidiu inovar apresentando aquilo a que poderíamos chamar “A Terceira Visão”. E qual é a visão do acesso à universidade defendida pessoalmente por Assunção Cristas em conferência de imprensa? Muito simplesmente: quem tem as notas mais altas ocupa as vagas limitadas pelo numerus clausus; quem não tem nota para entrar, compra a sua vaga na universidade.

Não precisam de acreditar em mim. Aqui está, em declarações oficiais do próprio CDS: “Não faz qualquer sentido que uma família portuguesa, cujo filho não se classificou para entrada no curso ou na escola da sua preferência, dado o numerus clausus, não possa escolher aceder a essa vaga pagando o seu custo real, tal como pode escolher uma universidade privada ou uma universidade estrangeira. Ou seja, os alunos que ficaram de fora podem, se quiserem, entrar pela sua ordem de classificação, pagando os preços de mercado”.

A esta terceira visão poderíamos então chamar de “meritocracia para os pobres, mercadologia para os ricos”. Quem é pobre tem que ter boas notas; quem é rico pode entrar desde que pague por isso. Só que, sabendo nós como as melhores notas são uma forma enviesada de aferir um mérito que já é por si próprio social e financeiramente condicionado, mesmo esta designação é enganadora. Para ser rigoroso, teríamos antes de por as coisas nestes termos: para todos, ricos, classe média e alguns dos pobres que conseguirem superar todos os obstáculos que se atravessem no seu caminho, valem as notas da escola; para os ricos mais burros, também se aceitam as notas de euro.

O leitor pode perguntar-se por que razão não começarão então as universidades a diminuir o numerus clausus para aumentar as vagas em que os alunos pagam o custo real do ensino, ou seja, muito acima das propinas atuais. A resposta do CDS é que os lugares que estariam disponíveis seriam aqueles que neste momento as universidades deixam em aberto para os estudantes de fora da União Europeia, com objetivos de internacionalização e financiamento das instituições. Só que há uma razão para os estudantes estrangeiros comparticiparem assim os seus custos de formação: é que ao contrário dos estudantes portugueses, não se pressupõe que as suas famílias tenham contribuído através de impostos nacionais para o financiamento do ensino superior.

O CDS aparentemente acha injusto que os portugueses — que já pagam para o ensino superior através do orçamento de estado e das propinas — não possam participar do mesmo esquema que os estudantes estrangeiros, esquecendo-se que apenas os mais abonados dos portugueses o poderiam fazer e que para os outros permaneceria a “injustiça”. Ora, se o CDS estivesse mesmo preocupado com estes (e outros) portugueses não conseguirem aceder à universidade, deveriam juntar-se a quem defende o fim do numerus clausus. Até porque a partir de agora o CDS nunca mais poderá defender o argumento meritocrático, no qual evidentemente não acredita. Pois se acreditasse no mérito jamais defenderia esta medida.

Aquilo em que o CDS acredita é numa versão para a universidade da política que esse mesmo partido inventou para a imigração: o visto dourado. O visto dourado, ou “golden visa”, separava o imigrante comum dos mortais, a quem todos os obstáculos se poderiam levantar, do imigrante rico que se poderia acolher de braços abertos se gastasse meio milhão de euros, muitas vezes a branquear capitais, no mercado imobiliário. Agora o que o CDS defende para a universidade é a mesma coisa: para os comuns dos mortais, o esforço de ter as notas mais altas; para quem pode, então que entre pagando um “golden visa” na universidade.

O CDS deixou de acreditar no mérito, se é que alguma vez o fez. O que é constante na sua preocupação é apenas isto: que haja alguma coisa que não se possa comprar.

Rui Tavares

OPINIÃO

31 de Julho de 2019, Público

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Historiador; fundador do Livre