A universidade: a crise e as estratégias possíveis

Onde se explica porque é que as universidades públicas portuguesas estão sob ameaça

A universidade: a crise e as estratégias possíveis s universidades públicas portuguesas estão à míngua.

Por isso, João Caraça organizou, em boa hora, na Universidade de Coimbra, um encontro para discutir as questões do financiamento do Ensino Superior. Durante décadas, Caraça foi responsável pelo Serviço de Ciência da Gulbenkian.
Depois, dirigiu a delegação em França da mesma fundação. E preside, agora, ao Conselho Geral da Universidade de Coimbra. O encontro sobre o financiamento foi o segundo de uma série. O primeiro dedicou-o à questão da autonomia universitária e haverá, ainda, um terceiro sobre carreiras.

Do outro lado do Atlântico, as universidades públicas também estão sob ameaça. Por exemplo, testemunhei, muito recentemente, que o clima na Universidade de São Paulo é idêntico ao de uma fortaleza que se encontra sitiada por um poder político e uma parte da opinião pública que desqualificam tudo o que possa vir da universidade. Considerada um antro de esquerda, num quadro de evidente emergência de outras formas de conhecimento e de comunicação: das fake news espalhadas pela net, aos gurus que se impõem de longe como mentores de Bolsonaro, sem esquecer essa espécie de fundamentalismo evangélico, que anda a destruir terreiros de candomblé na Baía e no Rio de Janeiro. O pensamento crítico e científico que a universidade potencia, fundado em demonstrações rigorosas e instrumentos de prova, não agrada aos que pretendem agitar e manipular as massas.
Tenho medo que a sanha antiacadémica passe de lá para cá. Ainda por cima, o populismo norte-americano tem também vindo a declarar guerra aos campus universitários, enquanto domínio do politicamente correto. Entre nós, uma mixórdia de académicos frustrados e daqueles que ficaram de fora já segue a mesma agenda, destilando o fel de uma cultura do ódio.
Porém, os nossos problemas são de uma outra ordem, e os ataques à universidade têm uma origem diferente. Ainda? Não posso garantir por quanto tempo ou que estejamos na antecâmara de uma crise anunciada.
Sobretudo, tenho dificuldade em precisar, numa ordem de importância, se os ataques à universidade provêm da sua sujeição aos mecanismos do mercado e à linguagem que lhe é adjacente, como insistiram vários intervenientes no encontro organizado por João Caraça.

ATAQUES À UNIVERSIDADE

Por exemplo, Manuel Portela e Caraça concordaram em denunciar a linguagem que invadiu as universidades, para alimentar uma espécie de estratégia, como sendo estereotipada. De facto, repetem-se e esvaziam-se de sentido palavras mágicas tais como a “excelência”, o “desempenho” e o inevitável “empreendedorismo”. Haveria muito a dizer acerca desta pobreza conceptual, mas o que ela esconde é uma notória vacuidade, representada pela aplicação dos conceitos da gestão às organizações, à política e às universidades. Igualmente pobre é o quadro de referências que lhe serve de contexto. Por isso, não é de estranhar que um conhecido professor de gestão de Lisboa fique muito satisfeito quando cita o Homem-Aranha como uma espécie de guia espiritual, num registo que se confunde, para o bem e para o mal, com o dos livros de autoajuda. Sempre é um caminho, que se encontrava oculto, a seguir. Uma autêntica caminhada! Como fugir, então, a essa linguagem do mercado e da gestão? O orador que proferiu a conferência de abertura, Luc Soete, da Universidade de Maastricht, não se desviou dela e ofereceu um ponto de vista bem diferente do que seria de esperar na Universidade de Coimbra. Defendeu que o financiamento público tinha um custo elevado para os contribuintes e, apenas, contribuía para criar maiores situações de desigualdade social. Não percebi o argumento. Perguntei-lhe se, então, sociedades onde o financiamento nas universidades, em lugar de ser público, fosse privado seriam mais igualitárias. Não me respondeu.
Tão-pouco aceitou que lhe apontasse o dedo, identificando a sua aparente análise de economista do mercado da educação como produto de uma agenda neoliberal.

Pedro Lourtie, que já foi secretário de Estado do Ensino Superior, proferiu uma das conferências mais informadas do encontro. No seu entender a questão do financiamento está diretamente ligada aos propósitos do Ensino Superior, constituído por universidades e institutos politécnicos. Porém, fiquei dececionado com o modo como concluiu a sua conferência, argumentando que uma estratégia para a universidade tinha de se saldar numa melhor gestão da mesma, ou seja, numa maior autonomia de gestão frente à conformidade burocrática. O argumento filia-se, insisto, num conhecimento profundo da situação. O objetivo é defender que as universidades tenham liberdade para chegar ao fim do ano com saldos positivos, pois só assim se poderão acautelar os investimentos resultantes de uma acumulação de capital.

Ataques à universidade, lembrou António Cunha da Universidade do Minho e ex-presidente do Conselho de Reitores, têm também origem na crescente judicialização dos As questões do financiamento do Ensino Superior foram recentemente discutidas na Universidade de Coimbra concursos internos, tendo em vista o recrutamento e as promoções. Ora, a litigância assusta as instituições académicas. Fá-las perder tempo e dinheiro em processos administrativos que se arrastam. Por isso, não há como fugir aos critérios de gestão que se traduzam em avaliações quantitativas, ditas objetivas. Pois, se assim não for, chovem as contestações e os processos aumentam.

Gonçalo Leite Velho e António Cunha também identificaram, na tutela das universidades, alguns problemas. O primeiro revelou que há uma desconfiança do Ministério em relação às universidades; tendo estas, por sua vez, entrado numa espécie de crise pelo facto de terem perdido o seu poder simbólico. Enquanto o presidente do CRUP confessou que os decisores políticos têm uma retórica de proteção do ensino universitário, mas que não se passa disso. Os números do financiamento público das universidades apresentados por Leite Velho demonstram uma situação preocupante de desinvestimento progressivo por parte do Estado.

Na abertura do encontro, Amílcar Falcão, reitor da Universidade de Coimbra, falou da concorrência perfeitamente desleal entre instituições do Ensino Superior.

Confesso não ter logo percebido do que se tratava, quando se falava em concorrência.
Só ao longo do dia se tornou clara a ideia, bem explicada por António Cunha, de que a concorrência tinha na base as diferentes capacidades de atração do financiamento privado. E o exemplo, também inevitável porque excecional, é o das instalações da Nova School of Business and Economics, em Carcavelos. A troco de um controlo por parte do Santander e da Fundação Francisco Manuel dos Santos, algumas dezenas de milhões de euros permitiram edificar novas instalações em terreno cedido pela Câmara de Cascais. Contudo, o modelo não parece passível de ser reproduzido noutras regiões. Assim, a incapacidade generalizada para atrair mecenas ou investimentos privados salda-se numa denúncia da concorrência desleal.

DEPOIMENTO

O dia foi longo e produtivo. Não posso calar uma outra denúncia acerca de uma situação que nem por ser habitual pode ser justificável: o encontro reuniu dez oradores todos homens. Quem conhece a universidade sabe que uma situação deste tipo é um erro e um atropelo grave aos direitos das mulheres.

O facto de ter falado quase no fim ao lado de Lino Gonçalves, diretor do Serviço de Cardiologia e catedrático da mesma especialidade deu-me tempo para pensar melhor no dossiê que tinha conseguido recolher sobre a questão do financiamento. No entanto, não me sentiria bem se não tivesse esclarecido, desde o início, a minha defesa da figura do professor-investigador, contra a ideia do professor-administrador, afastado da pesquisa, envolvido nos jogos do poder académico e, geralmente, favorecedor de lógicas do patrocínio e do clientelismo, desenvolvidas a coberto das instituições universitárias.

Apesar de os participantes não serem obrigados a conhecer o que já escrevi em termos de elogio à figura do professor-investigador e de crítica à do professor-administrador, não me sentiria bem se o não tivesse começado por esclarecer.
Num terreno em que os apelos à complexidade se me afiguram escusados e pretensiosos, procurei tornar clara a minha posição, pelo menos em dois pontos principais. Primeiro, um dos períodos de maior intensidade exemplar na produção de conhecimento sobre a universidade portuguesa surgiu durante o marcelismo e prolongou-se pela década de 70. Os dois volumes organizados por Sedas Nunes, em 1969, com base em colaborações na revista “Análise Social”, as intervenções do médico Miller Guerra e um livro sobre a crise da universidade de Orlando Ribeiro, publicado já depois de 1974, constituem os principais marcos de uma reflexão conjunta que procurou pensar a universidade, na sua relação com a investigação científica e, sobretudo, em termos de uma articulação com as estruturas da sociedade portuguesa e dos processos de modernização ou desenvolvimento que se lhe impunham.
Nessa conjuntura, falava-se de: questões da desigualdade e das deferências criadas pelo ensino universitário; das dificuldades de modernização interna porque se pautavam um conjunto de instituições académicas; e da necessidade de pensar em conjunto a universidade, articulando o aprofundamento entre áreas de especialidade e lógicas interdisciplinares. Em tudo isto fazia-se sentir uma irreverência mais ou menos contestatária, de quem falava a partir de posições mais ou menos marginais. Foi esta mesma perspetiva desconfortável, de quem fala sobre a universidade a partir de fora, que Vitorino Magalhães Godinho prolongou já na década de 80. Arrisque-se uma comparação com um outro padrão, mais tardio, na altura em que José Mariano Gago se constituiu como a figura de maior relevo. Um livro sobre a situação da ciência em Portugal, por ele dirigido (Dom Quixote, 1992), e um outro recente sobre o mesmo assunto que lhe é dedicado (Maria de Lurdes Rodrigues e Manuel Heitor, eds., “40 Anos de Políticas de Ciência e de Ensino Superior”, Almedina, 2015) servem de base para a construção deste segundo padrão. As questões da desigualdade e da modernização parecem ter dado lugar à já referida retórica da gestão, fundada em critérios da excelência, atração do financiamento ou investimento e avaliação do desempenho. Será, porventura, mais preciso afirmar que a força da modernização num contexto desenvolvimentista (pós-corporativo) se impôs, em relação ao combate à desigualdade.
Como? Colocando a autonomia da universidade em cheque, impondo como grande objetivo a necessidade de se ganharem inúmeros projetos, tendo em vista o aumento da riqueza.
Depois, o esforço anterior, destinado a pensar em conjunto as instituições universitárias, parece ter sido substituído por um apelo maior à fragmentação, a começar por uma separação entre investigação e ensino. Por último, à irreverência dos que falavam de fora também parece ter sucedido uma espécie de moral acomodatícia dos que falam, apenas, das suas áreas, para as celebrar e consagrar, pelos seus grandes feitos e resultados.
Telegráfica e simplista, a comparação entre dois tempos tem, pelo menos, a vantagem de contrariar a ideia de que a principal linha divisória foi criada em 1974, quando não parece ter assim sucedido. Porém uma análise histórica dos dois momentos, evocados enquanto padrões passíveis de serem comparados no tempo, não contém em si uma visão estratégica para a universidade. Ou seja, não supõe um ponto de vista programático.

A esse respeito, no encontro de Coimbra, foi o professor de medicina Lino Gonçalves quem ofereceu o melhor exemplo do que deve ser uma estratégia, necessariamente parcelar, mas de enorme alcance.
Apresentou o seu caso de forma clara e com uma modéstia que só está ao alcance dos grandes médicos e professores. A Universidade de Coimbra e a Universidade Nova de Lisboa, com o apoio da FCT, desenvolveram nos últimos anos um programa de ensino com a Escola Médica de Harvard. Cerca de 250 alunos daquelas universidades já frequentaram esse mesmo programa, o que valeu a alguns deles uma verdadeira internacionalização em termos das suas carreiras futuras. O principal argumento de uma experiência deste tipo é que a subida dos índices de investigação em medicina aumenta exponencialmente, na medida em que existe contacto com instituições e programas de nível mais elevado.
As oportunidades de novas carreiras, por consequência, também aumentam. Em suma, há que não ter medo de circular internacionalmente.
Há alguns anos, a uma escala informal e muito mais modesta, cerca de 18 alunos portugueses de sociologia, história e ciência política foram envolvidos numa experiência semelhante de internacionalização, graças a Onésimo Teotónio de Almeida, da Universidade de Brown.
Por isso, impõe-se que, em lugar de se adiarem propostas de sentido estratégico para uma outra qualquer reunião, se siga a lição dos pequenos passos dada por Lino Gonçalves. Este encontrou um modo de internacionalização dos seus alunos, puxando-os para os níveis mais elevados da investigação científica. Ora, sem nunca confundir o que é da ordem da gestão com o que deve ser uma estratégia universitária, algumas medidas podem ser sugeridas: (i) colocar as bibliotecas e os centros de documentação no centro de uma visão estratégica das universidades, sem cair no erro de proclamar que a comunicação digital consegue queimar etapas, em relação aos suportes materiais anteriores; (ii) investir com autoridade e dotar de meios os projetos interdisciplinares, quase sempre mais abertos à inovações e à criação, sem perder de vista o aprofundamento das áreas de especialidade; (iii) ter a coragem de não querer reduzir tudo a critérios quantitativos de avaliação (como lembrou Lino Gonçalves), salvaguardando a inovação, medida qualitativamente, da mesma forma que, sem descurar a existência de projetos de grande dimensão (por exemplo, da FCT e ERC), se devem também acarinhar iniciativas de pequena dimensão, porventura mais experimentais, mas também mais produtivos e internacionais; (iv) acabar com a ideia de que a promoção na carreira de professor e investigador tem de se sujeitar à abertura de vagas de um quadro fixo, quando deveria ser feita por reconhecimento do mérito individual; (v) por último, conjugar promoções e recrutamento por concurso dos mais novos, a quem será necessário dar perspetivas de carreira, eliminando a instabilidade associada a estatutos precários, mas contrariando qualquer tipo de passagens administrativas.

Expresso / Revista E | 12.10.2019 - DIOGO RAMADA CURTO