Orçamento: a Universidade com pés-de-chumbo

A redução do valor máximo da propina no Ensino Superior é uma medida socialmente injusta, pouco inteligente e estruturalmente errada.

A autonomia é uma necessidade essencial das universidades, públicas ou privadas. A necessidade de inovar, investir em novas apostas, premiar o mérito, atrair talento ou criar valor a um ritmo marcado por um contexto internacional e aberto, exigem estatuto e mecanismos de autonomia claros e fortes.

A capacidade de uma escola universitária assumir apostas arriscadas e atrair apoios da sociedade foi, aliás, recentemente aplaudida, com inteira justiça, por muitas personalidades, até do Estado, num caso particular bem conhecido.

A contraciclo, uma medida orçamental, anunciada para surpresa de muitos, reduz o valor da propina máxima no Ensino Superior em 20%. Admitamos, para simplificar, que não se trata de uma medida eleitoralista até porque teria um desvio de pontaria (dado que são, na sua maioria, os pais que sentem o valor das propinas e estes não desviarão necessariamente o sentido de voto para os entusiastas da medida).

A redução do valor máximo da propina no Ensino Superior, tomada no quadro do método “quantos-queres” da construção do orçamento, é uma medida socialmente injusta, pouco inteligente e estruturalmente errada, que corrói a autonomia das universidades e lhes cria (ainda mais) limitações de gestão e desenvolvimento.

Tomemos como ponto de partida que o valor das propinas já foi incorporado pelos estudantes e respectivas famílias desde o início dos anos 90. Ou seja, uma grande percentagem dos estudantes e famílias contribuiria, com esforço mas com normalidade, com os cerca de 1000 euros anuais. A acção social existente e a sua melhoria deveria apoiar os estudantes e famílias de menores rendimentos para garantir assim a justa igualdade no acesso ao Ensino Superior. Esta redução universal mantém 80% das dificuldades daqueles que as têm e oferece 200 e tal euros a todos os outros. Trata-se de uma medida basicamente injusta do ponto de vista social, o que já foi referido em várias opiniões.

Em segundo lugar, trata-se de uma medida pouco inteligente, na linha do voluntarismo que devia ser moderado com alguma reflexão estrutural. O valor actual da propina foi calculado com base numa indexação relativa ao IPC (inflação) acumulado desde os anos 40. Não foi, assim, um valor fixado de forma ad hoc. Ao reduzir o valor de forma arbitrária, destrói-se toda a sua lógica de sustentação e abre-se a via da redução até zero, já que 800 e tal euros é um valor sem referência. Recorde-se que em anos de inflação negativa (aconteceu recentemente) o valor decresceu (apesar de alguma oposição que pretenderia manter as propinas congeladas).

Em terceiro lugar, a redução do valor das propinas, de 1.º ciclo (licenciaturas), dos 2.º ciclos (mestrados) conducentes a profissão (p.e. Engenharias ou Psicologia) e dos mestrados integrados (Engenharias, Medicina, Arquitectura) reduz, num valor percentual significativo, as receitas próprias das instituições. As receitas próprias são um espaço de autonomia legal de despesa (investimento, contratação de convidados, etc.) face às restrições de utilização do Orçamento do Estado (que, na generalidade das instituições, se esgota a 2 de Janeiro com a cativação para salários de docentes e funcionários). Ora, menos receitas próprias conduz linearmente a menos autonomia de gestão, de facto e de jure.

Note-se de passagem que o critério de 50% de receitas próprias, teoricamente necessário para a adopção do estatuto fundacional, fica afectado por esta decisão, embora provavelmente ninguém se vá lembrar disso no futuro e ninguém queira falar disso no presente.

Dir-se-á que o Estado compensará as instituições de Ensino Superior. Os responsáveis das instituições já o disseram, embora não possam ou não queiram expressar a sua convicção. Desde há anos, talvez décadas, que o Estado nunca compensa as IES pelos custos adicionais ou quebras de receita que vai provocando – contribuições para a CGA, agregações, progressões, etc. Em cada ano as IES discutem ad nauseam o acerto do ano anterior. Não é difícil antecipar a discussão de 2020 – “então e a compensação pela redução das propinas?” – resposta do governo de 2020 – “as universidades têm muitos saldos, usem-nos”.

Acresce a este “pequeno” assunto das propinas, o aumento de custos fixos que a contratação de investigadores provoca e que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) apenas bem intencionadamente afirma que irá suportar (em particular e ao que consta, dependendo parcialmente de apoios FEDER). Em muitas instituições, faculdades nomeadamente, teremos em 2019 um aumento de 20% a 30% dos custos fixos com salários.

Acrescem a estas “pequenas” dificuldades de gestão económica e financeira, os sinais de influência política directa e indirecta, por via de juventudes partidárias e filiação de membros de conselhos gerais e de curadores (no caso das instituições com estatuto fundacional) limitadoras da capacidade crítica e da independência intelectual que, pelo menos no nosso mundo ocidental, sempre foram o valor fundamental das IES, nomeadamente das universidades de referência.

Todos estes sinais são preocupantes. Depois de algumas décadas de esforço em prol da autonomia e da competitividade das universidades portuguesas, com resultados positivos evidentes, duas ou três decisões irreflectidas ditadas por oportunidade política vão recolocar a capacidade de gestão e inovação das instituições ao nível dos anos 80.

Não deixa de causar perplexidade a moderação das críticas a medidas tão irreflectidas como estas, um sinal da era da pós-verdade. Quanto a todos os meus colegas académicos que desde os anos 80 contribuíram para uma Universidade portuguesa reconhecida e de qualidade, só resta uma mensagem final, inspirada pelo espírito deste orçamento: “universitários de todo o país, reformai-vos.”

Nuno Guimarães - Professor catedrático, ISCTE-IUL 26 de Outubro de 2018 - Público