Função Pública Os aumentos no Estado deixaram de ser referência para o privado

Com a excepção dos últimos anos, regras do sector público têm convergido com o privado. Nos salários, as mais baixas qualificações são premiadas no público, mas as mais altas são penalizadas.

Uma realidade no passado, a importância dos aumentos salariais no sector público como referência para o sector privado desapareceu ao longo da última década, resultado dos anos sucessivos de congelamento dos salários e mesmo de cortes nominais suportados pelos funcionários públicos.

Agora que se voltam a registar actualizações na tabela salarial da administração pública, a par com o regresso das progressões, parece pouco provável o reatar dessa ligação com a política salarial do sector privado.

Antes da crise financeira do final da primeira década deste século, a negociação salarial entre Governo e sindicatos da função pública teve, durante décadas, uma enorme importância, não só para os funcionários públicos, como também para os trabalhadores do sector privado. O que ficava definido para o Estado era depois usado como ponto de partida para qualquer negociação nas empresas.

Se assim fosse agora, teríamos os 0,3% – que até este momento são o aumento aceite pelo Governo para os funcionários públicos – como referência para o resto da economia? Ou temos o valor que o Governo mais gosta de apresentar, de um aumento de 3,2%, quando se acrescenta também o reforço salarial dos funcionários públicos por via da reposição das progressões que estavam congeladas?

Provavelmente, nem um número nem o outro contarão muito para o que vai acontecer no sector privado.

Ligação perdida com a troika

“Essa ligação, entre os aumentos no sector público e os do sector privado, perdeu-se com a troika”, afirma João Cerejeira, professor da Universidade do Minho e especialista no mercado laboral.

“Com a troika tivemos reduções nominais de salários em alguns anos e, por isso, como é lógico, a ligação com aquilo que acontecia nas empresas desapareceu. Agora é difícil perceber se irá regressar”, explica, assinalando que o aumento de 0,3% (que deverá ser alvo de um reforço) fica bastante abaixo daquilo que está a acontecer neste momento no mercado de trabalho em Portugal.

Os últimos números apontam para aumentos do salário médio na casa dos 2,8%, algo que acontece por via de uma maior escassez de oferta no mercado de trabalho nacional (o desemprego está agora na casa dos 7%), que se sente particularmente para algumas profissões, e conta também com a ajuda dos aumentos realizados no salário mínimo nacional.

A última década tinha sido, tanto no sector privado como no público, de más notícias para os trabalhadores no que diz respeito ao nível dos seus salários. E, na administração pública, o congelamento dos salários foi permanente, combinado com a redução nominal dos vencimentos que foi aplicada em 2012 e apenas totalmente revertida em 2018.

Deste modo, se no início do século, em média, a diferença era muito significativa – e uma das mais significativas da União Europeia –, o cenário de estagnação dos salários em termos nominais registado ao longo da última década na função pública terá servido para reduzir diferenças.

Neste momento, diz João Cerejeira, “os indicadores mostram que o salário médio dos funcionários públicos é mais alto que o dos privados, mas essa é uma análise que não leva em conta o nível das qualificações, que é também mais alto, em média, na função pública”.

Para uma análise mais completa, afirma, “há pouca informação disponível”. “A ideia é que existe, na função pública, um prémio positivo face ao sector privado para as funções menos qualificadas e um prémio negativo para as funções mais qualificadas”, explica.

Isto é, para quem trabalha em funções em que normalmente se ganha menos, é melhor estar na função pública, para quem tem funções onde geralmente se ganha mais, o sector privado abre outras possibilidades.

“O que acontece é que no privado, o leque salarial é muito maior”, afirma o economista, que em contraponto lembra que os salários mais baixos no sector privado apenas subiram por causa da actualização do salário mínimo nacional e na função pública, o salário mais baixo continua a ser mais alto que o salário mínimo nacional.

Cada vez menos diferenças

Há depois diversas outras diferenças, para além do nível salarial, entre trabalhar no sector público e no sector privado.

Nos horários, em 2016 regressou-se às 35 horas semanais como o período normal de trabalho na função pública, enquanto no sector privado o máximo definido por lei são as 40 horas semanais.

Quanto à idade da reforma, a regra é a mesma para todos os trabalhadores, mas há regimes transitórios em vigor para alguns funcionários públicos, nomeadamente os que entraram antes de 1993. E, no que diz respeito à reforma antecipada, no Estado é possível mais cedo, aos 55 anos com 30 anos de descontos, mas com penalizações significativas no rendimento.

As férias são de 22 dias por ano, tanto no sector público como no privado, sendo que o Estado oferece a alguns funcionários mais um dia de férias ao ano por cada dez anos de serviço.

A diferença que é talvez mais determinante é a maior estabilidade com que um funcionário público pode contar no seu posto de trabalho. Não há despedimentos colectivos nem a possibilidade de o Estado invocar a extinção do posto de trabalho.

Com a troika, criou-se o regime de requalificação que, na prática, sem os despedir, colocava funcionários públicos sem trabalho e progressivamente com menos rendimento, mas esse regime foi removido, em 2017.

Este tipo de análise contudo, tem de levar em conta as grandes diferenças de regras que existem dentro da Administração Pública. Para conseguir comparar os funcionários públicos com os trabalhadores do sector privado, primeiro é preciso saber de que funcionários públicos estamos a falar.  

“Do ponto de vista legal, assistiu-se a uma convergência significativa entre as regras do público e do privado, um processo que apenas foi travado nos últimos anos. No entanto, na função pública o que existe neste momento é uma heterogeneidade muito grande de situações”, afirma João Cerejeira, assinalando, por exemplo que há as carreiras antigas, que têm características diferentes das mais recentes, e há as pessoas que estão no sector empresarial, que também estão em condições diferentes das outras.

“Cada reforma que foi feita adicionou uma camada de situações legais, o que gera um cenário de desigualdades, para a mesma função e dentro das mesmas organizações, de grande complexidade”, explica.

Sérgio Aníbal - 31 de Janeiro de 2020, Público