De máscara e sem medo, os alunos voltam aos laboratórios: “É impossível replicar à distância o que se faz aqui”

Os alunos de mestrado e de doutoramento da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Nova voltaram ao campus para as aulas práticas porque “nada substitui os alunos terem a mão na massa”.

Num dos departamentos, imprimiram-se viseiras em 3D e criou-se um ventilador “simplificado” para que possa ser produzido a grande escala — e os alunos vão chegando, sem receio. impossível replicar à ventilador “simplificado” para que possa de Maio de 2020, 21:05

De máscara e sem medo, os alunos voltam aos laboratórios: “É impossível replicar à distância o que se faz aqui”

Os alunos de mestrado e de doutoramento da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Nova voltaram ao campus para as aulas práticas porque “nada substitui os alunos terem a mão na massa”.

Num dos departamentos, imprimiram-se viseiras em 3D e criou-se um ventilador “simplificado” para que possa ser produzido a grande escala — e os alunos vão chegando, sem receio

À entrada do laboratório de nanofabricação da Faculdade de Ciências e Tecnologias (FCT), da Universidade Nova de Lisboa, está um grupo de quatro alunos a conversar, de bata vestida, luvas calçadas e máscara posta — só a máscara é novidade para estes estudantes de mestrado, o resto sempre foi obrigatório. “Já tinham saudades uns dos outros”, ouve-se alguém a comentar nos corredores quase vazios. Não se vêem há algum tempo: depois de quase três meses em casa, as aulas práticas e laboratoriais arrancaram no campus da Caparica. “Sentia falta de ver as pessoas com quem costumava ter aulas, de voltar a fazer o meu trabalho”, diz Ana Fragoso, de 24 anos. “Mas era melhor podermos estar todos cá.”

Em pé, a aula de Caracterização de Materiais do mestrado em Engenharia de Micro e Nanotecnologias começa na manhã de sexta-feira numa das salas de laboratório repletas de equipamentos, com a professora Rita Branquinho ao lado de um computador e uma amostra para analisarem. “O que se lembram deste equipamento?”, pergunta a professora. As respostas chegam hesitantes. Os olhos por cima das máscaras dos alunos percorrem o aparelho, “a ver se dizia o nome”. Riem-se. Hoje, vão analisar o desgaste das condições atmosféricas em amostras de diferentes materiais. “A olho nu podem parecer iguais, mas o equipamento permite ver à micro e nano escala — quase atómica, vemos as vibrações das ligações químicas — o que é que altera”, explica aos quatro alunos. Antes da pandemia de covid-19, a sala estaria cheia: cada turma prática tem entre 15 e 30 alunos, “o que impossibilita voltar ao funcionamento normal”, reconhece a docente.

O objectivo é que sejam os próprios alunos a mexer nos equipamentos para que depois possam replicar o processo com as amostras que usarão nas suas teses de mestrado. “Para ganharem independência.” A professora vai dando indicações, os alunos executam-nas — com espaço para dúvidas e explicações sem ecrãs pelo meio. Mas o computador portátil de Rita Branquinho continua com a câmara ligada para poder falar com os restantes alunos que não estão presentes neste turno. Divide-os por salas virtuais para que possam continuar a desenvolver os seus projectos de grupo e, de vez em quando, salta de sala em sala para tirar dúvidas.

Há novas sinalizações nos laboratórios, as batas são desinfectadas a cada utilização, há um número máximo de ocupantes por cada sala. Trabalha-se por turnos – três horas para trabalho, uma para limpeza e desinfecção. Foi posta uma mesa fora das salas para que possam deixar amostras, sem contacto. “Mas acaba por ser só um ajuste, já tínhamos muitos destes cuidados”, admite Rita Branquinho, com uma máscara de tecido bege no rosto. As secretárias já estavam divididas por aluno, já existiam indicações coladas no chão, os alunos e professores já usavam luvas (disponibilizadas por todo o departamento) e bata, que ficam num armário à entrada do edifício, com o nome de cada estudante escrito à mão.

“Vais notar muita diferença no laboratório de química quando te aperceberes que tens a bancada de quatro pessoas só para ti”, comenta Ana Fragoso com o colega Diogo Lopes, ambos estudantes do 2.º ano de mestrado. “O laboratório de química é onde criamos as nossas nanopartículas e é dos mais usados aqui no CENIMAT [centro de investigação de materiais]. É uma grande mudança não ver gente nesse laboratório. Costumava estar sempre cheio”, esclarece ao PÚBLICO. A máscara é o que mais os inquieta com o tempo quente, mas sabem que tem de ser e não têm receio por estar de volta à faculdade. “Não tenho qualquer problema em estar aqui. O que mais me incomoda é ter de vir de transportes, mas desde que cumpra as regras de segurança – que as cumpro – não há mal”, conta Diogo Lopes, de caderno na mão. “Era disto que estava à espera.”

Fora do laboratório, uma funcionária desinfecta as mesas e maçanetas. Há dispensadores com desinfectantes ao longo dos corredores e das salas, agora vazias, e os cartazes colados pelas paredes não deixam esquecer a importância de lavar as mãos, usar máscara e manter o distanciamento social. “Já é a segunda vez que venho cá esta semana e até me sabe bem”, confessa a professora. Certo é que “nada substitui os alunos terem a mão na massa e estarem eles próprios a aprender a errar”. 

Fazer ventiladores e a necessidade de “observar, ouvir, tocar”

O último dia de aulas presenciais nesta universidade foi a 13 de Março e, três dias depois, começaram as aulas à distância – ainda antes de ser declarado o estado de emergência. Antes dessas datas, haveria cerca de 10 mil estudantes no campus; agora, os parques de estacionamento estão vazios, há poucos carros que cruzam o asfalto do recinto universitário e quase se contam pelos dedos as pessoas em cada departamento, de máscara. Segundo a FCT, só cerca de 300 alunos regressaram à faculdade nesta primeira fase. Pelo país, outras faculdades também abriram portas às aulas práticas.

Uns 200 metros ao lado do centro de investigação de materiais CENIMAT-i3N, está o Departamento de Engenharia Mecânica e Industrial, onde estuda e trabalha Valdemar Duarte, doutorando em engenharia mecânica. “Os corredores tinham uns 5000 alunos e estavam cheios de gente, a cantina estava cheia de gente. Agora não”, compara o estudante de 28 anos.

Com a incerteza a pairar no horizonte, os alunos ainda se vão dividindo entre aulas online e aulas presenciais. Nesta actividade prática a que o PÚBLICO assistiu, usam-se dois tipos de máscara: as cirúrgicas e as de soldar. Estão a utilizar uma impressora 3D de grandes dimensões para produzir um objecto complexo através da deposição de metal, camada a camada — neste caso é aço, mas pode ser alumínio, titânio ou diferentes ligas de cobre. O que os alunos têm de fazer é “estudar os efeitos dos parâmetros do processo no resultado final em termos de resistência mecânica”, explica Telmo Santos. Chama-se “processo aditivo de material metálico” e é este o tema da tese de doutoramento de Valdemar Duarte.

Ainda que as aulas práticas só tenham recomeçado na semana passada para alunos de mestrado e doutoramento, Valdemar Duarte já tem vindo à faculdade. De viseira no rosto, conta que o equipamento de protecção da cara foi fabricado no próprio departamento com impressoras 3D e que se voluntariou para ajudar a produzi-los, para que fossem distribuídas em hospitais. “Quando vamos para casa começamos a sentir-nos um pouco inúteis, com uma coisa deste tamanho a afectar a população e nós sem conseguirmos fazer nada. Quando surgiu esta oportunidade de fazer viseiras foi fantástico.”

Também ajudou no protótipo do ventilador “minimalista”, feito para ajudar no combate à covid-19 e para ser “de fácil produção em Portugal e em qualquer parte do mundo, com componentes de fácil aquisição no mercado”, explica o professor universitário Telmo Santos, enquanto o mostra ao PÚBLICO. Ao ritmo da respiração mecânica, um dispositivo que simula o pulmão de uma criança — na rigidez e no volume — vai subindo e descendo. O aparelho ainda será testado em “pulmões” de adulto; por enquanto, o ventilador permanece ligado numa das salas do departamento de manhã à noite.

Ainda estão a fazer ensaios de resistência, tem de passar por uma fase de testes em animais, terá de ser certificado pelo Infarmed e só depois poderá ser fabricado e cedido a hospitais. Uma das vantagens deste ventilador — além de ser “simples” para poder ser fabricado aos milhares por todo o mundo — é que “o ar que o paciente inspira nunca entra em contacto directamente com a válvula”, o que facilita a esterilização quando se muda de paciente. A própria válvula, o “elemento central do ventilador”, foi feita com uma impressora 3D e pode ser produzida por qualquer pessoa desde que tenha acesso ao ficheiro (que será disponibilizado, tal como o modelo do ventilador).

Valdemar Duarte sente-se seguro na faculdade e sabe que este é um regresso necessário para o seu trabalho: “Iria atrasar-me muito se não tivesse vindo agora.” Além disso, “uma pessoa farta-se de estar em casa e isto é impossível fazer lá”. Ao lado, o professor concorda. “É fundamental os alunos poderem observar, ouvir, tocar, sentir e conhecer na prática coisas tão simples quanto a logística envolvida para que as coisas funcionem”, assevera Telmo Santos. E continua: “É impossível replicar à distância o que se faz aqui no laboratório, que por sua vez mimetiza o que se faz na indústria. Não há curso online, não há nenhuma plataforma que permita fornecer aos alunos o que nós aqui fornecemos nesta componente prática.”

Cláudia Carvalho Silva Público