“Universidades deviam ter regime de autonomia semelhante ao das autarquias”

Novo presidente dos reitores acusa Estado de tratar universidades como “uma repartição” e alerta para risco de deixar de haver “condições de acolher estudantes e investigadores”.

O Governo está de saída, mas o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) entende que há processos que deviam continuar em marcha, como a discussão de um novo modelo de financiamento ou a avaliação dos centros de investigação pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Paulo Jorge Ferreira, de 61 anos, doutorado em Engenharia Electrotécnica e reitor da Universidade de Aveiro desde 2019, acaba de ser eleito para um mandato de três anos à frente do organismo que agrupa as universidades públicas e a Universidade Católica.

Já tinha concorrido, há três anos, à presidência do CRUP. Perdeu na segunda volta por um voto. O que justifica que mais instituições o tenham apoiado agora?
Não gostaria de comparar o passado com o presente, porque são situações completamente distintas. Apresentei ao plenário um projecto de acção e de futuro para o CRUP, que este, de forma muito clara, abraçou. Para mim, as discussões acabaram no dia das eleições. Não é uma coisa estranha haver duas candidaturas. Foi melhor do que ter havido só uma, porque se discutiram coisas de forma mais viva.

A sua vitória é expressiva – são quase 70% dos votos. Mas no período pré-eleitoral foi notória a divisão entre as universidades, sobretudo entre as maiores instituições e as mais pequenas.
Não sei o que é que veio à comunicação social no período pré-eleitoral, nem por que mãos veio. Mas, no pós-eleições, tudo isso é absolutamente irrelevante. Eu recuso qualquer espécie de divisão entre grandes e pequenos.

Nas suas primeiras declarações a seguir à eleição sublinhou a importância da “diversidade das instituições” de ensino superior e do seu papel na “coesão territorial”. Quase como se estivesse a enunciar que o CRUP não pode funcionar com uma linha política que privilegie um determinado grupo de instituições.
A diversidade de que eu falava é ter entidades como a Universidade Católica, que faz parte do CRUP, ou a Universidade Aberta, que tem um contexto de ensino à distância que nenhuma outra instituição tem, ou o Instituto Universitário Militar, que está noutra esfera de funções, mas mantém o seu cariz universitário. Esta diversidade não me parece um embaraço, pelo contrário, é uma força. O país é diverso. Se todas as instituições tivessem uma carta de missão semelhante, algumas falhariam claramente em certos territórios.

O papel do CRUP é defender essa diversidade?
Não só. Eu vejo o CRUP como um órgão que pode também dar à sociedade e aos governos, sejam eles de que linha partidária forem, matéria de reflexão para pensar o futuro do país. O conselho não deve só reagir – como tem feito e bem – a propostas que nos são entregues. Devemos conseguir identificar temas importantes para o país, convocar outros parceiros relevantes e produzir documentos que possam ser linhas estratégicas em determinado tema.

Qual deve ser a postura do CRUP no actual contexto político? Esperar que este se clarifique, ou ser interventivo num momento pré-eleitoral para influenciar as visões dos partidos?
Nesta altura seria útil continuarmos o trabalho com o ministério, como já estava previsto fazer-se ao nível do contrato de legislatura, na identificação e estabilização de um conjunto de indicadores que possam nortear o financiamento no futuro. Também precisamos de continuar a esclarecer o que será o programa FCT Tenure e prosseguir com a avaliação das unidades de investigação e laboratórios associados.

Faz sentido, neste contexto, que a avaliação das unidades de investigação mantenha o calendário previsto?
O acto de avaliar é completamente separado do acto de financiar. Por isso, um governo que deixe as unidades avaliadas deixa condições que permitem a quem vier a seguir extrair conclusões.

Mesmo com o Governo de saída?
As equipas já estão formadas, há unidades de investigação e laboratórios associados de grande dimensão, com muitas centenas de investigadores, que já estão imersos no processo de recolha de informação para prepararem a sua avaliação. É verdade que pode não haver tempo, nem legitimidade política, para passar dessa fase para o financiamento, mas, se não houver avaliação, estamos numa situação pior ainda.

O novo modelo de financiamento também deverá ficar em stand-by. O que é que o Governo ainda pode deixar feito que possa ajudar à reflexão que o executivo seguinte possa fazer sobre esta matéria?
A nota explicativa do Orçamento do Estado 2024 para a Ciência, Tecnologia e Ensino Superior é bastante clara sobre a situação do financiamento do ensino superior. Comparativamente à média, gastamos menos cerca de 6 mil dólares por estudante em paridades de poder de compra.

É aquilo que a OCDE tem dito.
A média da OCDE é 18 mil dólares anuais por aluno, Portugal está a gastar 12 mil. É uma diferença brutal. E esta diferença, segundo o mesmo documento, não se verifica noutros graus de ensino. O facto de o investimento estar tão desfasado no ensino superior é preocupante. Todos os reitores estão de acordo que estão subfinanciados. Se faltam 6 mil dólares por estudante vezes 223 mil estudantes dá 1300 milhões de dólares.

Para que é que as universidades precisam de mais dinheiro?
As dotações de Estado não chegam sequer a pagar as despesas de pessoal em nenhuma universidade. As universidades têm tido capacidade de ir buscar mais dinheiro a outras fontes  por exemplo, na Universidade de Aveiro, por cada euro do Estado capta 1,64 euros. Mas este dinheiro tem finalidades concretas: projectos de investigação, contratos de prestação de serviços. É actividade que deixa algum dinheiro na universidade, mas não é financiamento que possa servir para as tarefas estruturais.

Há um passivo de intervenção no edificado, por exemplo, que se torna cada vez mais oneroso corrigir. Se a dotação orçamental não aumentar, ou se não forem criados programas específicos para isso, caminhamos a passos largos para termos universidades sem condições de acolher os muitos estudantes e investigadores que temos.

Os últimos dois anos têm sido marcados por contestação: dos professores do básico e do secundário, dos médicos e de outras carreiras profissionais. Porque não vemos o mesmo tipo de mobilização no ensino superior?
Os professores que estão na carreira estão envelhecidos e têm tempos médios de permanência na mesma categoria enormes. Durante muito tempo houve uma incapacidade das instituições de atender às promoções. Diria que se chegou ao ponto de não haver uma grande correlação entre mérito e posição na carreira. Acho que é preciso reavaliarmos os critérios de promoção e de progressão e termos soluções separadas de progressão das soluções de recrutamento.

Isso implica uma revisão dos estatutos de carreira dos docentes.
Os estatutos de carreira só têm uma solução para estes dois problemas que é o concurso público. Acho que nós devíamos ter mecanismos de promoção claros, abertos, auditáveis, transparentes, à disposição de todos – não só dos professores e investigadores, mas também do pessoal técnico, administrativo e de gestão – e ao mesmo tempo ter concursos para recrutamento, para ir buscar ao exterior gente nova.

Essa é uma das matérias que também ficaram em stand-by com a interrupção da legislatura.
Infelizmente. Espero bem que a revisão dos estatutos de carreira esteja nos programas eleitorais dos partidos. Estaremos atentos às propostas e também disponíveis para discuti-las e dar contributos.

A revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) também ficará parado com a dissolução da Assembleia.
Há lições deste processo de discussão que são de ter em conta. Uma delas é a questão da autonomia das instituições de ensino superior, que são vistas pelo Estado praticamente como repartições. Eu acho que era a altura de reconhecer que as instituições de ensino superior pertencem à administração autónoma do Estado e não à administração indirecta ou directa. As instituições de ensino superior poderiam assim ficar com um grau de autonomia semelhante ao das autarquias, que é muito mais compatível com a sua dimensão e estatuto.

Como é que isso se operacionalizava?
Abria-se caminho para uma dotação plurianual, que seria compatível com a forma como as instituições de ensino superior operam. Vencer esse obstáculo era extraordinário, porque nos permitia fazer aquilo que nós já fazemos muito bem, que é fazer muito com pouco.

As universidades-fundação previstas no RJIES continuam a fazer sentido?
O modelo fundacional acaba por ser uma forma de conceder às instituições que o peçam um estatuto de autonomia reforçada.

Uma visão como aquela que estava a propor, mais próxima das autarquias, acabaria por esvaziar as necessidades do regime fundacional.
Provavelmente. Acho que o entendimento da autonomia seria extremamente benéfico para as instituições.

As universidades têm notado um aumento da procura dos serviços da Acção Social, face à situação de crise que as famílias estão a sentir?
A grande preocupação é o abandono e este deve-se a múltiplos factores. Para sustentar a procura do ensino superior e a capacidade do estudante de chegar ao final dos estudos devemos ter uma oferta de residências compatível.

Como está a correr a concretização do Plano Nacional de Alojamento do Ensino Superior?
Temos os concursos a andar e penso que, no final da execução, teremos um reforço substancial do número de camas para estudantes no ensino superior. Tem havido muitos problemas, de naturezas diferentes, mas também temos de ver que há um esforço de construção muito grande a nível nacional. Nunca tivemos uma sincronia destas num único objectivo de construção – mas este depende muito a sustentabilidade do ensino superior.

Vamos ter um reforço significativo do número de camas no arranque do ano lectivo 2024/25 ou provavelmente já só em 2025/26?
Vamos já começar a sentir os efeitos, desde logo na reabilitação da oferta existente, que também é importante. Quanto às novas construções, elas demorarão mais tempo do que as de reabilitação, mas creio que estarão prontas em tempo útil para o próximo ano.

Durante praticamente 50 anos as instituições de ensino superior foram um espaço quase sagrado à actuação das forças policiais. Nas últimas semanas uma nova vaga de manifestações pelo clima acabou por pôr isso em causa. O actual contexto justifica que se quebre essa regra não escrita do sistema de que as polícias não entram nos campi?
As universidades têm objectivos de descarbonização ambiciosos, que já estão nas suas cartas estratégicas. Todas reconhecem a importância da descarbonização e da transformação energética como vital para o futuro. Também respeitam completamente o direito ao exercício da liberdade de expressão e de opinião que a todos assiste. Quanto aos eventuais manifestantes, saberem também que há o mínimo de condições de operação e de segurança que não devem ser postas em causa.

Quando se ultrapassa esse mínimo, faz sentido que as autoridades sejam chamadas?
Eu não conheço os detalhes das actuações em nenhuma das faculdades. As faculdades são entidades autónomas e o director da respectiva faculdade que terá conhecimento ao pormenor dos factos poderá responder muitíssimo melhor do que eu. Dei a minha opinião geral sobre aquela parte da questão que me parece ser extremamente clara.

Samuel Silva 11 de Dezembro de 2023, Público