“Quem tem medo das avaliações?”

Não custa muito perceber porque é que, sem quotas, as avaliações dos funcionários públicos são ridículas.

O primeiro artigo que publiquei na imprensa foi há 15 anos, no PÚBLICO, e intitulava-seQuem tem medo das avaliações?”. Nele, pedia que os professores universitários fossem avaliados pelos alunos e que essas avaliações tivessem consequências. Ao lê-lo hoje, percebo que é um texto um pouco ingénuo em diversas dimensões. A ingenuidade mais desarmante está mesmo na pergunta que fiz: quem tem medo das avaliações? Ninguém tem medo. Ou, pelo menos, não há que ter medo: em havendo avaliações, vai-se encontrar um esquema para que todos consigam excelentes classificações.

Nas últimas semanas, tivemos a confirmação empírica de que avaliações sem quotas na função pública degenera rapidamente num belo regabofe. A 2 de Junho, foi capa do PÚBLICO que mais de metade dos professores do ensino superior tinham a nota máxima (Excelente); quase 80% tinha uma das duas notas mais altas. Há instituições onde 80% dos professores conseguiram nota máxima. Vale a pena lembrar que, no resto da função pública, apenas 5% podem ter excelente e apenas 25% podem ter excelente ou muito bom. Com professores universitários tão fantásticos, ficamos sem perceber porque é que no ranking mundial de universidades do Times Higher Education não aparece nenhuma universidade portuguesa nos primeiros 400 lugares. Sendo os nossos docentes tão bons, somos levados a concluir que são os funcionários não-docentes que não prestam.

Mas os professores do ensino superior estão em douta companhia. A 7 de Maio, ficámos a saber que 55% dos juízes avaliados tiveram a classificação máxima e 80% tiveram uma das duas notas mais altas. Com juízes tão bons, é estranho que tantos estudos — basta ler, por exemplo, os relatórios da OCDE — concluam que a nossa Justiça é um dos factores de atraso do nosso país. A culpa não pode ser dos juízes, que são óptimos. Sobre os magistrados do Ministério Público, os dados indicam-nos, como seria de esperar, que são todos óptimos. Sobram os arguidos e seus advogados. São eles os culpados do mau funcionamento da nossa justiça. Ou então serão os oficiais de justiça.

Não custa muito perceber porque é que, sem quotas, as avaliações dos funcionários públicos são ridículas. Em cada universidade, as regras de avaliação dos docentes têm de ser definidas dentro de cada faculdade. Necessariamente, os critérios de avaliação numa faculdade de letras terão de ser diferentes dos aplicados a um químico. E, se a um professor de Direito será importante contar as citações que recebe de juízes do Tribunal Constitucional, para um professor de Economia as citações relevantes serão outras. Dentro da sua universidade, nenhuma faculdade quererá ficar prejudicada em relação às outras. Se uma faculdade for séria ao mesmo tempo que as outras não, a seriedade sair-lhe-á cara: os professores das outras faculdades irão ter uma progressão salarial mais rápida.

A única forma de exigir que as faculdades sejam sérias é com a reitoria a impor quotas. Mas, na verdade, uma universidade que imponha quotas estará a prejudicar os seus docentes por comparação com os das outras universidades. Pelo que o problema (mais atenuado, é certo) se mantém.

Com esta pândega, não surpreende que o Governo tenha, arbitrariamente, limitado as transferências que dá às universidades para a progressão salarial dos seus docentes. Basicamente, apenas garantem verbas para quem teve dois excelentes consecutivos (dois triénios). Ao fazer isto, o Governo prejudica seriamente as universidades que foram sérias e que limitaram o número de excelentes a atribuir. De qualquer forma, como sabemos bem, é uma questão de tempo até algum governo ceder às pressões e libertar os montantes necessários para as progressões na carreira.

Não conheço os detalhes das avaliações dos magistrados, mas também enfrentam conflitos de interesses óbvios. Por um lado, os avaliadores de hoje são os avaliados de amanhã e os avaliados de hoje serão avaliadores amanhã (não há um corpo profissional de inspectores judiciários). Por outro lado, como as decisões finais sobre avaliações são tomadas pelo Conselho Superior da Magistratura (ou pelo Conselho Superior do Ministério Público), onde, por eleição, todos têm assento, acabamos por ter magistrados a avaliar outros magistrados que estão acima da carreira. Um caldo perfeito para florescimento de interesses corporativos.

Não impor quotas é, dada a forma com as corporações se movem, brincar às avaliações. O que mais choca no caso do Ensino Superior é que existem instituições centralizadoras que facilmente o poderiam fazer. As universidades têm o CRUP — o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas — e os politécnicos têm o CCISP — o Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos. Que estes conselhos, onde se reúnem os líderes das principais instituições de ensino superior, não se coordenem para definir regras comuns que impeçam esta corrida para o absurdo mostra como o Estado corporativo que herdámos do regime salazarista continua a dar-se muito bem em democracia.

Podemos criticar o Governo. Podemos pedir medidas ao Governo e à Assembleia da República que impeçam esta corrida ao Excelente, mas foram as instituições que falharam.

P.S. – Quero mencionar os institutos politécnicos do Porto e de Santarém, que se destacam das restantes instituições de ensino superior pela seriedade das suas avaliações.

Jovens amorfos

A Justiça italiana resolveu pregar um susto aos jovens que se mobilizaram para salvar vidas de refugiados no Mar Mediterrâneo. Entre os acusados, que arriscam vários anos de prisão, está Miguel Duarte, aluno de doutoramento de Matemática no Instituto Superior Técnico. Miguel Duarte juntou-se a uma equipa internacional que terá salvado da morte mais de 1000 pessoas.

O assunto tem sido falado e noticiado, mas, ainda assim, parece-me que gera pouca indignação. A pressão pública e política contra as autoridades italianas devia estar nos píncaros. Condenar estes jovens será a falência moral e ética da União Europeia.

No discurso de 10 de Junho de há dez anos, António Barreto pedia que seguíssemos o exemplo dos nossos heróis: “Os nossos maiores heróis, com Camões à cabeça, ilustraram-se pela liberdade e pelo espírito insubmisso. Pela aventura e pelo esforço empreendedor. Pela sua humanidade e, algumas vezes, pela tolerância. (...) Mais do que tudo, os portugueses precisam de exemplo. Exemplo dos seus maiores e dos seus melhores. O exemplo dos seus heróis.”

Não podemos exortar os portugueses a seguir o exemplo dos nossos maiores heróis e depois abandoná-los à sua sorte. Que usemos toda a nossa força política e diplomática para o apoiar.

Luís Aguiar-Conraria Opinião - Professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

19 de Junho de 2019, Público