Sim, precisamos de universidade para todos

Para enfrentar o futuro que aí vem — europeízado, globalizado, automatizado, com enormes incorporações de conhecimento e inovação na economia — Portugal terá de escolher uma das estratégias. Manter uma elite, ou alargar a elite.

Um dos aspectos colaterais da discussão sobre racismo na sociedade portuguesa foi revelar que temos ainda, no nosso país, duas visões muito distintas sobre a chegada à Universidade e, de forma geral, ao Ensino Superior. 

A primeira é “já temos doutores a mais” e a segunda é “precisamos de muito mais gente na universidade”.

Já todos ouvimos o primeiro destes queixumes, e até a insistência no termo “doutor” com que em Portugal se tratam exageradamente os licenciados, nos indica qual é o pensamento implícito no tipo de discurso conservador: a licenciatura deve ser um bem escasso, de forma a que ela possa continuar a ser diferenciadora. Na outra visão, chamemos-lhe progressista, a licenciatura deveria generalizar-se tanto quanto possível e o mestrado não deveria andar muito longe, e infelizmente já vamos tarde em imitar os outros países europeus que aboliram propinas precisamente para ajudar a universalizar o acesso ao Ensino Superior. Na visão progressista, a licenciatura deveria tornar-se tão generalizada que o tratamento diferenciador por “dr.” deixaria finalmente de fazer sentido — e já não vai sem demora.

Estas duas visões são opostas, e não podem estar as duas certas. Para enfrentar o futuro que aí vem — europeízado, globalizado, automatizado, com enormes incorporações de conhecimento e inovação na economia — Portugal terá de escolher uma das estratégias. Manter uma elite, ou alargar a elite. Ter uma elite que se mantém no seu lugar empurrando os outros para baixo, ou criar uma elite que entende o seu papel como puxar o resto do país para cima. Estas são escolhas sociais e políticas decisivas.

Como os leitores imaginarão, sou visceralmente um defensor da segunda hipótese a de alargar a Universidade (e neste termo genérico incluo todo o ensino superior). Por isso à direita que se escandaliza com a discussão da chegada das minorias desfavorecidas à Universidade, a minha resposta é “como podem não escandalizar-se antes com o facto de termos só metade dos nossos jovens na Universidade?”. As restrições no acesso ao conhecimento são, historicamente, as mais importantes causas do atraso português. Portugal só no final do século XX atingiu níveis de alfabetização que a Suécia tinha quase trezentos anos antes. Com o alargamento da UE a Leste, Portugal passou a ter de competir com países, como os Bálticos, onde o acesso à universidade era mais generalizado, com as consequências que seriam de esperar para os aumentos de produtividade deles ao chegarem ao mercado único. Hoje, um país como a Estónia não tem só vários computadores por cada sala de aula na escola secundária: tem uma impressora 3D por sala. E por aí adiante. Exemplos como estes provam que a visão restritiva e conservadora da universidade, falsamente elitista e falsamente meritocrática, deixaria o país num buraco se viesse a ser seguida.

O problema é que Portugal não está a dar o impulso no sentido oposto — da generalização do acesso ao conhecimento — com a velocidade e a vontade política que seriam necessárias. Para que isso possa acontecer há dois passos que o país resiste a dar.

O primeiro é ter um ensino secundário com mais autonomia e mais exigência — mas não a exigência de que a direita falta. Mais autonomia significa um ensino secundário que se possa especializar e que possa experimentar. Mais exigência significa preparar os alunos para que possam eles próprios ser mais autónomos quando chegarem ao ensino superior, pois a falta de autonomia no momento de investigar e aprender é o principal problema dos novos estudantes universitários. Mas mais exigência significa também saber preparar todos, mas mesmo todos, os alunos que podem chegar ao superior. Quando os exames obrigatórios fomentam um mercado de explicações especializadas, está implicitamente a admitir-se que só as famílias com disponibilidade financeira para isso poderão preparar bem os seus filhos que tenham uma natural dificuldade numa disciplina. Entre os mais pobres, e entre as minorias, raramente há possibilidade de se recorrer a explicadores, e a probabilidade de um jovem que poderia chegar à universidade ficar pelo caminho aumenta.

O segundo passo que tem de se dar é desenclausurar o ensino superior português. Sim, já muito se avançou nas últimas décadas, mas mesmo os mais otimistas não poderão negar que (à exceção de alguns nichos) a Universidade portuguesa tem dois grandes problemas: ainda não atinge, de forma genérica, uma qualidade equiparável à dos países europeus com os quais competimos, e acima de tudo é muito fechada. A endogamia académica — como se chama ao hábito de contratar gente de dentro das instituições, já de si dominadas pelas redes clientelares internas — atinge em Portugal níveis assustadores. E não se vê nas universidades, nem nos decisores políticos, vontade para mudar as coisas.

Um governo que queira Portugal com futuro não poderá deixar de encarar estes dois problemas. É preciso um compromisso coletivo para universalizar a universidade, ao mesmo tempo que se deve passar a exigir bastante mais da educação e, em particular, do ensino superior em Portugal.

Rui Tavares 10 de Julho de 2019 Público

OPINIÃO - Historiador; fundador do Livre