Na universidade, a antiguidade é um posto?

Enquanto este panorama não mudar, é impossível que a universidade portuguesa deixe de ser uma academia de capelinhas e de cumplicidades, com padrinhos e afilhados (e enteados também).

É difícil consultar um dos muitos rankings internacionais de universidades e não se ficar envergonhado com o lugar que Portugal ocupa. Houve progressos, claro, mas estão longe do necessário. Uma das causas do atraso das nossas universidades está identificada: a endogamia. Tira-se o curso numa universidade e fica-se por lá. No meu tempo, depois da licenciatura, era-se contratado como assistente estagiário; a seguir fazia-se o mestrado e passava-se a assistente, depois o doutoramento e ficava-se professor. Sempre tudo no mesmo sítio.

Hoje, a carreira começa com o doutoramento, mas os processos são semelhantes. Um relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência mostra que em Portugal a taxa de endogamia, definida como professores que se doutoraram na mesma instituição onde ensinam, é de 70%. Mais grave, não houve qualquer progresso: as taxas de endogamia entre os mais velhos são iguais às dos mais novos. Enquanto este panorama não mudar, é impossível que a universidade portuguesa deixe de ser uma academia de capelinhas e de cumplicidades, com padrinhos e afilhados (e enteados também). Sendo um problema grave, é difícil resolvê-lo, porque qualquer solução é má quando quem a aplica o faz sem seriedade.

É perante este quadro que muitos ficaram chocados com o Decreto-Lei de Execução Orçamental de 2019, que autorizou as Universidades a abrir concursos internos para a promoção de professores que estejam na mesma categoria há pelo menos dez anos. Excluem-se quer candidatos externos, quer candidatos internos mais novos. Na prática, muda-se radicalmente o Estatuto da Carreira Docente Universitária e Politécnica, sem ter havido qualquer discussão sobre os seus efeitos. Utiliza-se a Lei da Execução Orçamental, que nada tem a ver com as carreiras do ensino superior, para promover ainda mais a endogamia nas universidades e politécnicos.

O Decreto-Lei da Execução Orçamental cria um regime excepcional que agravará a endogamia e prejudicará ainda mais a classe de investigadores precários — os bolseiros e convidados, entre outros —, que têm sido mantidos à margem da carreira docente. Basta lê-lo com alguma atenção para perceber que as boas intenções são um mero disfarce.

Grosso modo, há três categorias para professores de carreira: professor auxiliar, associado e catedrático. Desde 2009 que as universidades estão obrigadas a que, entre os seus professores de carreira, metade sejam associados e catedráticos. Como, entretanto, o Estado português entrou em ruptura financeira, nunca a lei foi cumprida. Para a cumprir, as universidades têm de contratar mais professores associados e catedráticos, o que é feito por concurso. As regras obrigam a que os concursos sejam abertos a candidatos externos, o que pode ter uma consequência perversa: ganhando alguém de fora, os custos aumentam mais que se ganhar alguém de dentro. Quando ganha alguém de dentro, o custo extra é apenas o aumento salarial. Se ganha alguém de fora, o custo é todo o novo salário que tem de ser pago.

A boa intenção anunciada é a de ajudar as universidades a cumprir a lei, garantindo que no máximo metade dos seus professores são auxiliares. Se o objectivo fosse apenas este, não era necessário dobrar as regras dos concursos para catedrático, bastava promover professores auxiliares a associados. A promoção de um professor associado a catedrático não tem qualquer impacto no cumprimento da lei. Adicionalmente, se o objectivo fosse a anunciada boa intenção, não havia necessidade de restringir o concurso apenas a quem está há dez anos na mesma categoria. Num departamento onde convivam auxiliares com menos e com mais de dez anos de carreira, a promoção do mais novo contribui tanto para o cumprimento da lei como a promoção do mais velho. Excluir os mais novos destes concursos é apenas mais uma forma de os lixar. A bem-intencionada legislação mais parece uma encomenda de algum departamento específico.

Mais grave, com as vagas a serem ocupadas por incumbentes mais velhos, o custo para os que estão à porta da carreira é enorme. As universidades portuguesas viciaram-se em mão-de-obra barata e precária, mas altamente qualificada. Em muitos centros, grande parte da investigação é feita por bolseiros de pós-doutoramento, com bolsas com prazos definidos, sem direito a subsídio de desemprego, de doença, de maternidade, etc. Há situações dramáticas entre pessoas que têm 30, 40 ou 50 anos e que, de repente, se descobrem no desemprego sem quaisquer apoios. Dos bolseiros, além da investigação, espera-se muitas vezes que dêem aulas, apesar de não serem pagos por isso. E, claro, os bolseiros têm de ceder para não criar más-vontades que se reflectirão em futuros concursos. Outra praga que neste momento existe é a dos professores convidados, pessoas que não estão na carreira, mas que são contratados com contratos semestrais e parciais (por exemplo, professor auxiliar convidado a 25%). Os salários são ridículos, mas, claro, vão aceitando para acumular experiência, na esperança de num futuro concurso poderem entrar na carreira.

Há ainda aqueles que, ao abrigo de uma “norma transitória”, vivem de contratos a prazo sem quaisquer garantias de renovação. Estes da norma transitória fazem investigação como bolseiros, têm critérios de monitorização e objectivos a cumprir e, muitas vezes, dão aulas. Fazem, portanto, o mesmo serviço dos professores de carreira, só que com salários iguais aos dos bolseiros, bastante abaixo da remuneração dos docentes de carreira. Também eles serão altamente prejudicados com estes concursos endogâmicos.

(Não me interpretem mal. Não sou nem contra a existência de bolseiros de investigação a dar aulas, nem sou contra professores convidados. Com o devido enquadramento, estes contratos são muito úteis e proveitosos para as universidades e a experiência é muito útil aos bolseiros e aos convidados.)~

Permitam-me que sublinhe a ironia de ter havido tantos professores e investigadores de carreira a queixar-se da contratação de Pedro Passos Coelho como professor catedrático convidado, havendo até abaixo-assinados a manifestar indignação com tamanho desplante, que agora estão tão caladinhos. As instituições estão viciadas em trabalho barato e precário e os seus professores e investigadores viciados na protecçãozinha que a endogamia académica lhes proporciona.

Declaração de Interesses: sou Professor Associado há menos de dez anos, pelo que, potencialmente, poderei ser prejudicado por este tipo de concursos. Entre os meus amigos, tanto há os que podem ser prejudicados como há os que podem ser beneficiados.

Luís Aguiar-Conraria - Opinião

17 de Julho de 2019, Público

Professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho