Acórdão de 26 Jun. 2019

PREVPAP – CONTRATO  DE TRABALHO – ANTIGUIDADE

 É nula a parte da cláusula do contrato de trabalho celebrado ao abrigo do PREVPAV de onde conste que a antiguidade "somente" será considerada para efeitos de desenvolvimento de carreira

In casu, o documento em causa refletia um acordo entre as partes, mas tal acordo mais não era do que a implicação necessária da celebração do contrato de trabalho ao abrigo do PREVPAV. Contudo, as partes estipularam que a antiguidade da autora seria somente considerada para efeitos de desenvolvimento da carreira.

Ora, sendo a Lei PREPAV de carácter imperativo, não podiam as partes estipular quaisquer cláusulas limitativas dos seus efeitos, sob pena de nulidade. Ainda que assim não fosse e a cláusula fosse integralmente válida, podendo-se configurar a situação jurídica como uma remissão abdicativa por parte da autora, sempre haveria de se considerar que aquando da declaração da renúncia se estava em plena vigência de um contrato de trabalho entre autora e ré.

E bem assim, durante a vigência do contrato de trabalho a retribuição do trabalhador é considerada um direito indisponível.

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Tribunal da Relação de Lisboa

Acórdão de 26 Jun. 2019, Processo 6132/17

Relator: José Manuel Duro Mateus Cardoso.

I -Sendo a ré uma entidade abrangida pelo art.º. 2º-1 da Lei no 112/2017 de 29/12 (que estabelece o programa de regularização extraordinário dos vínculos precários – PREVPAV), ao celebrar com a autora o contrato de trabalho sem termo, tal implicou, necessariamente e "ope legis", o reconhecimento de que a relação existente antes da celebração deste contrato, configurava um contrato de trabalho

II- Sendo a Lei PREPAV de carácter imperativo, não podiam autora e ré estipular quaisquer cláusulas limitativas dos seus efeitos, sob pena de nulidade.

III- É nula a parte da cláusula do contrato de trabalho celebrado ao abrigo do PREVPAV de onde conste que " somente " será considerada a antiguidade para efeitos de desenvolvimento de carreira.

IV- Ainda que a cláusula fosse válida e consubstanciasse uma remissão abdicativa a mesma também não seria válida por outro motivo, pois havendo reconhecimento da existência de um contrato de trabalho desde data anterior, por força da Lei PREVPAV, aquando da declaração da renúncia, estava-se em plena vigência de um contrato de trabalho entre autora e ré.

V- Estando a ré abrangida nas entidades referidas nos arts. 14º-1 e 2º-1 da Lei PREVPAV, não se aplica o disposto no no 3 do art.º. 14º da mesma Lei, mas o disposto no seu no 2, não podendo haver alteração do valor das retribuições anteriormente estabelecidas com a entidade empregadora durante o vínculo pré-existente.

VI- Os Tribunais do Trabalho são incompetentes em razão da matéria para conhecerem dos pedidos de condenação da ré a proceder aos descontos para a Segurança Social.

(..) Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

III- ALEGOU, em síntese, que:

- Por contrato celebrado em 28 de Fevereiro de 2014 foi contratada pela ré, sob o regime de prestação de serviços, para prestar os serviços "jurídicos", mediante a retribuição, a título de honorários, no montante base mensal de € 1.320,00 (mil trezentos e vinte euros), sem IVA, dado que se encontrava isenta do mesmo;

- Esta contratação teve a duração de 1 ano;

- A ré foi renovando ininterrupta e sucessivamente a prestação de serviços, contratando-a para as mesmas funções, para o mesmo local de trabalho, com a mesma retribuição e carga horária;

- Considerando as circunstâncias em que prestava os serviços, o contrato celebrado configura um contrato de trabalho.

IV- A ré foi citada, realizou-se Audiência de Partes em que teve lugar infrutífera tentativa de conciliação, e aquela veio a CONTESTAR, dizendo, no essencial, que:

(…)

"IV - DECISÃO:

Face ao exposto, julgo extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide."

Inconformada com a sentença, a autora interpôs recurso de Apelação (fols. 203 a 211), apresentando as seguintes conclusões:

(...)

A ré não contra-alegou.

VI- A matéria de facto considerada provada em 1ª instância, não impugnada, é a seguinte:

1- A autora foi contratada pela ré, sob o regime de prestação de serviços, por contrato outorgado em 28 de Fevereiro de 2014, para prestar serviços jurídicos.

2- A contratação destinou-se a ocupar o posto de trabalho de jurista do núcleo de aprovisionamento da ré, mediante o pagamento de uma retribuição mensal, a título de honorários, no montante base de € 1.320,00 (mil trezentos e vinte euros), sem IVA.

3- A contratação inicial da autora pela ré teve a duração de 1 ano.

4- A ré foi renovando, ininterrupta e sucessivamente, a sua relação contratual com a autora, contratando-a para as mesmas funções, para o mesmo local de trabalho, com a mesma retribuição e a mesma carga horária.

5- Na data da instauração da acção, a autora tinha em vigor um contrato de prestação de serviços jurídicos, iniciado em 1 de Julho de 2017 e com prazo de execução de 183 dias.

6- A ré recorreu sempre ao mesmo formalismo procedimental para contratar os serviços da autora, fazendo-o através de convites dirigidos à autora para que esta apresentasse propostas, no âmbito das quais, esta entregava à ré uma carta contendo uma proposta e uma declaração, ambas já previamente redigidas e facultadas pela ré à autora.

7- Em 29 de Junho de 2018, ao abrigo do programa de regularização extraordinária dos vínculos precários, a autora e a ré celebraram um contrato de trabalho sem termo, nos termos do qual a autora foi contratada para exercer as funções inerentes à categoria de técnico superior, da carreira de técnico superior.(--)

Os factos provados resultam do acordo das partes e dos documentos juntos ao processo, cujo teor/conteúdo não foi impugnado por qualquer uma das partes."

(..)

Vejamos porquê.

A ré, BBB, EPE (SESARAM), está integrada na (...) da Madeira e é uma pessoa colectiva de direito público, de natureza empresarial, dotada de autonomia administrativa financeira e patrimonial, nos termos do Decreto-Lei no 558/99, de 17 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei no 300/2007, de 23 de Agosto. Rege-se pelo regime aplicável às entidades públicas empresariais, com as especificidades constantes dos seus estatutos aprovados pelo Decreto Legislativo Regional no 12/2012/M de 2 de Julho, com as alterações introduzidas pelo art. 59.º do Decreto Legislativo Regional no 17/2015/M, de 30/12 (ORAM2016) e pelo Decreto Legislativo Regional n.o 36/2016/M, de 16/08.

Assim, a ré é uma entidade abrangida pelo art. 2º-1 da Lei no 112/2017 de 29/12 (que estabelece o programa de regularização extraordinário dos vínculos precários - PREVPAV), pelo que, nos termos do art. 14º-1-b) da mesma Lei, ao celebrar com a autora o contrato de trabalho de 29 de Junho de 2018 (facto provado no 7), tal implicou, necessariamente e "ope legis", o reconhecimento de que a relação existente antes da celebração deste contrato, configurava um contrato de trabalho ("1- ....obriga as mesmas entidades a proceder à regularização formal das situações, conforme os casos e nomeadamente mediante o reconhecimento: ...; b) Da existência de contratos de trabalho, nomeadamente por efeito da presunção de contrato de trabalho, e por tempo indeterminado por se tratar da satisfação de necessidades permanentes;...").

Dúvidas assim não existem, e aqui acompanhamos totalmente o decidido em 1ª instância, que a ré, por força da Lei PREVPAV, reconheceu que entre ela e a autora vigorou um contrato de trabalho a partir de 1/3/2014.

Mas será que por constar do contrato de trabalho celebrado a 29 de Junho de 2018 que a antiguidade retroagida a 1/3/2014 era somente para efeitos de desenvolvimento da carreira tal integra uma renúncia por parte da autora a quaisquer direitos anteriores à data da celebração do contrato?

Não cremos que assim seja.

Estabelece o art. 863º-1 do CC que "o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor", sendo que a remissão de dívida é, "por conseguinte, a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com a aquiescência da contraparte", sendo uma das causas de extinção das obrigações, tendo "como efeito imediato a perda definitiva do crédito, de um lado, e a liberação do débito, pelo outro"- Prof. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", 3ª ed., Vol. II, pags. 209 e 218.

Ficou provado que autora e ré, a 29/6/2018, celebraram um acordo escrito segundo o qual disseram que "A antiguidade da autora, contada desde 1 de Março de 2014, ... será somente considerada para efeitos de desenvolvimento da carreira, designadamente para efeitos de alteração do posicionamento remuneratório, de acordo com o que for estabelecido para os restantes trabalhadores da SESARAM, EPE", ora ré (facto provado no 8).

Temos, pois, uma declaração escrita emitida pela autora e pela ré que a fizeram sua ao assiná-la, a qual não foi afastada através da alegação ou prova por parte da autora da existência de falta ou de vícios da vontade susceptíveis de a invalidar, nos termos previstos nos arts. 240º e s. do CC.

Sendo o teor da declaração negocial o acima referido cumpre proceder à sua interpretação.

Determina o art. 236º do CC que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; porém, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que a declaração vale.

Acolhe, pois, o Código Civil (…)

Ora o documento em causa reflecte um acordo entre as partes nestes autos, mas tal acordo mais não é do que a implicação necessária da celebração do contrato de trabalho ao abrigo do PREVPAV, como resulta do art. 13º-1 da Lei PREVPAV, "...Após a integração e o posicionamento remuneratório na base da carreira respectiva, para efeitos de reconstituição da carreira, o tempo de exercício de funções na situação que deu origem à regularização extraordinária releva para o desenvolvimento da carreira, designadamente para efeito de alteração do posicionamento remuneratório...". Ou seja, a consequência da referida Clª 7ª do contrato já resultava, "ope legis" da Lei PREVPAV como uma das consequências decorrentes daquele art. 13º, até sem necessidade que a mesma, ou as mesmas, constassem do teor do contrato de trabalho celebrado.

Porém, em tal cláusula, autora e ré acrescentaram algo que a Lei não contempla, dizendo que "...será somente considerada para efeitos de desenvolvimento de carreira...".

Acontece que sendo a Lei PREPAV de carácter imperativo, não podiam autora e ré estipular quaisquer cláusulas limitativas dos seus efeitos, sob pena de nulidade, porque contrária à lei, nulidade que, como se sabe, é de conhecimento oficioso nos termos dos arts. 280º-1 e 286º do CC.

É assim nula a parte da Clª 7ª do contrato de trabalho de 29/6/2018 onde consta que " somente " será considerada a antiguidade para efeitos de desenvolvimento de carreira. E sendo nula, a restrição constante do contrato de trabalho, não produz quaisquer efeitos.

Ainda que assim não fosse e a Clª 7ª fosse integralmente válida, e pudéssemos configurar a situação jurídica como uma remissão abdicativa por parte da autora, haveria de se considerar a validade de tal renúncia, isto porque, como se viu, havendo reconhecimento da existência de um contrato de trabalho desde 1/3/2014, por força da Lei PREVPAV, aquando da declaração da renúncia, estava-se em plena vigência de um contrato de trabalho entre autora e ré. E, como é sabido, a retribuição do trabalhador, durante a vigência do contrato de trabalho, é considerado direito indisponível, estando a disponibilidade do mesmo retirada da sua vontade (art. 97º da LCT) (v. a propósito, Dr. João Leal Amado, A Protecção do Salário, Coimbra, 1993, pags. 214 e 215).

Portanto, ainda que a Clª 7ª contratual fosse totalmente válida, a autora não podia renunciar a quaisquer direitos de carácter remuneratório.

Quanto à 2ª questão.

Pretende a autora a condenação da ré a "pagar à autora todos os direitos e regalias decorrentes do vínculo de natureza laboral iniciado a 3 de Março de 2014, nomeadamente, salários, subsídios, férias, descontos para o regime da Segurança Social e deduções fiscais".

Já acima se apurou que a ré se encontra abrangida pelas entidades referidas nos arts. 14º-1 e 2º-1 da Lei PREVPAV pelo que não se aplica o disposto no no 3 do art. 14º da mesma Lei. Antes é aplicável o disposto no no 2 do art. 14º dessa Lei onde se estabelece que "De acordo com a legislação laboral, o reconhecimento formal da regularização, produzida por efeito da lei, não altera o valor das retribuições anteriormente estabelecido com a entidade empregadora em causa quando esta era parte do vínculo laboral preexistente."

Consequentemente, a autora apenas tem direito às retribuições de férias, subsídios de férias e subsídios de Natal, não pagos, entre 1/4/2014 e 1/7/2018, considerando-se para efeitos de cálculos os valores mensais respectivos que eram pagos em cada ano (facto provado no 9).

Quanto ao pedido de condenação da ré a proceder aos descontos para a Segurança Social, a incompetência material do Tribunal do Trabalho para o mesmo foi suscitada expressamente pela ré na sua contestação.

Porém, o Tribunal "a quo" apesar de se ter pronunciado quanto à também excepcionada incompetência material por se alegar estar em causa um contrato de serviços públicos realizado nos termos do Código de Contratos Públicos, não dispensou uma única linha quanto a esta específica questão.

Este assunto foi já objecto de antiga, repetida e uniforme pronúncia jurisprudencial, quer do Supremo Tribunal de justiça, quer dos Tribunais da Relação, quer, principalmente, do Tribunal dos Conflitos.

De facto, como já se decidiu no Ac. do STJ de 13/11/02, Col.STJ, T. 3, pag. 276, "a questão da eventual falta de pagamento de contribuições do réu à Segurança Social, não é da competência dos tribunais do trabalho". No mesmo sentido podem ver-se o Ac. da Rel. de Lisboa de 14/2/2007, disponível em www.dgsi.pt/jtrl, P. no 9982/2006-4; o Ac. da Rel. de Lisboa de 7/3/2007, disponível em www.dgsi.pt/jtrl, P. no 9393/2006-4; o Ac. do Tribunal de Conflitos de 27/10/2004, disponível em www.dgsi.pt/jcon, P. no 02/04; o Ac. do Tribunal de Conflitos de 29/6/2005, disponível em www.dgsi.pt/jcon, P. no 01/05; o Ac. do Tribunal de Conflitos de 4/10/2006, disponível em www.dgsi.pt/jcon, P. no 03/06; o Ac. do Tribunal de Conflitos de 4/10/2007, disponível em www.dgsi.pt/jcon, P. no 014/07; o Ac. da Rel. de Lisboa de 5/11/03, Recurso no 4825/03-4ª secção; e o Ac. da Rel. de Lisboa de 12/5/04, Recurso no 7944/03-4ª secção (com sumário disponível em www.dgsi.pt/jtrl), onde se decidiu que "a questão da eventual falta de pagamento de contribuições do réu à segurança social não é da competência dos tribunais de trabalho e também não e de qualquer outro tribunal judicial", sendo que "competentes para o conhecimento de tais acções são os tribunais administrativos e fiscais".

Assim, é entendimento repisado que, em casos semelhantes ao destes autos, no pedido formulado de condenação na regularização de descontos para a Segurança Social estão em causa verdadeiras quotizações sociais com natureza parafiscal que se encontram no âmbito das imposições financeiras públicas a favor de organismos do Estado. Por isso o pedido de pagamento das contribuições em causa resulta da relação jurídica contributiva da qual emergia uma obrigação da entidade empregadora perante a Segurança Social, mediante a concretização e entrega dos descontos,

E embora a prestação contributiva pressuponha a existência de um contrato de trabalho, a obrigação respectiva só se concretiza mediante uma relação jurídica entre a entidade que procede aos descontos e o Estado. Não estão em causa direitos e deveres recíprocos das partes no contrato de trabalho, nem respeita a relações jurídicas estabelecidas directamente entre as mesmas.

Assim, não sendo os Juízos do Trabalho competente em razão da matéria para conhecer deste pedido concreto, terá a ré de ser absolvida da instância do mesmo, atento o art. 99º-1 do CPC/2013.

IX- Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em revogar a sentença recorrida e, em consequência:

a) Reconhecer a existência de um contrato de trabalho entre autora e ré desde 1/3/2014;

b) Condenar a ré a pagar à autora as retribuições de férias, subsídios de férias e subsídios de Natal, vencidos e não pagos entre 1/4/2014 e 1/7/2018, considerando-se para efeitos de cálculos os valores mensais respectivos que eram pagos em cada ano à autora como remuneração, acrescidos de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.

c) Absolver a ré da instância quanto ao pedido de descontos para a Segurança Social.

Custas em ambas as instâncias a cargo da autora na proporção de 1/15 e da ré na proporção de 14/15.

Lisboa, 26 de Junho de 2019

JusNet 4237/2019