Relatório do Parlamento propõe estudar quotas em universidades para negros e ciganos

Documento preliminar redigido pela deputada do PS Catarina Marcelino resulta de colaboração de todos os partidos. Foram ouvidas mais de 30 entidades e pessoas. Vieira da Silva e Jorge Lacão sublinham necessidade de o Estado intervir.

O documento é preliminar e a sua relatora, a deputada do PS Catarina Marcelino, ainda irá incorporar sugestões, mas para já deixa em cima da mesa a hipótese de criação de quotas nas universidades para afrodescendentes e ciganos. Diz o documento: “Desenvolver um estudo sobre a integração de jovens afrodescendentes e ciganos no Ensino Universitário, com vista a avaliar possibilidades de integração de medidas de acção positiva.”

Em declarações ao PÚBLICO, a deputada Catarina Marcelino explicou que “uma das medidas de acção positiva podem ser as quotas”. E acrescentou: “É muito difícil estudar propostas concretas de medidas de políticas públicas sem ter dados”, mas a questão é que “temos a percepção de que há poucas pessoas de origem africana e cigana nas universidades”. “Se formos pela percepção não há igualdade de oportunidades e têm que ser tomadas medidas.” A proposta é generalista e caberá ao Governo definir em que moldes serão aplicadas ou definidas as quotas. A educação é a única área em que são referidas medidas de acção positiva.

PS quer discriminação positiva para negros e ciganos

Intitulado Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-racial em Portugal o documento de 30 páginas identifica as áreas em que é necessário intervir: justiça e segurança, educação, saúde, habitação ou trabalho.

Vai ser entregue antes das eleições à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e está a ser apresentado na Assembleia da República esta manhã numa cerimónia que decorre durante o dia e que conta com a presença de vários membros do Governo: a ministra da Presidência Mariana Vieira da Silva, a ministra da justiça Francisca Van Dunem ou o secretário de Estado das Autarquias Locais Carlos Miguel. Na sala estão vários activistas e académicos. 

Logo pela manhã, Mariana Vieira da Silva destacou a importância de “desocultação” das discriminações e referiu que os debates e os números de queixas sobre racismo e xenofobia feitas à Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial — que de 2017 para 2018 aumentaram 98%, referiu — são sinal de que “estamos no caminho de desocultar uma realidade”. Segundo a CICDR, em 2018  foram apresentadas 346 queixas: 21,4% por discriminação de ciganos, 17,6% de negros e 13% de brasileiros.

A ministra sublinhou a necessidade de o Estado intervir em várias áreas, da justiça à educação e também de ter informação e dados para intervir. O PS tem, de resto, no seu projecto de programa eleitoral a criação de medidas discriminação positiva onde não exclui a criação de quotas. 

Caso Jamaica: todos os partidos responderam de forma “lamentável”, diz Isabel Moreira

Também Jorge Lacão, vice-presidente da Assembleia da República, que abriu a cerimónia, afirmou que é necessário ter uma atitude “de firmeza democrática” nesta matéria. Elogiou as leis portuguesas mas referiu que “o esforço jurídico pode ficar comprometido quando se manifestam fenómenos de exclusão”, sendo por isso necessário combatê-los.

O relatório nasceu de uma proposta do PS, feita em Setembro do ano passado, e para o qual foram ouvidas 31 entidades e personalidades, e feitas visitas nas quais se envolveram 28 organizações e 18 deputados de todos os partidos políticos com assento parlamentar.

Elencando que Portugal “tem na sua organização e interacção comportamentos etnocêntricos, ou seja, em que as representações, os valores com que avaliamos as minorias culturais e étnico-raciais são entendidos como prevalecentes e dominantes”, e que isto “não pode justificar violência ou limitações nos direitos, liberdades e garantias” de pessoas que pertencem a “comunidades minoritárias”, o documento divide-se em capítulos e em cada um propõe medidas.

Na educação, o relatório sublinha que, em relação “às crianças e jovens provenientes de minorias étnico-raciais, há um conjunto de factores que criam desigualdades dentro do sistema que é necessário acautelar, porque são em muitos casos factor de segregação indirecta”.

PS quer que Parlamento faça diagnóstico sobre racismo em Portugal

Outra das propostas na área da Educação, para a qual foram citados vários intervenientes, é “combater a segregação das crianças afrodescendentes e das crianças ciganas dentro do sistema de ensino, garantindo o fim de escolas ou turmas exclusivamente com crianças de minorias étnico-raciais, ou a integração das crianças destes grupos em percursos escolares alternativos sempre que reúnam as condições para integrar o ensino regular”.

Na área da justiça e segurança — que o documento refere ser “das mais sensíveis” — sugere-se fazer um levantamento da origem étnico-racial da população prisional portuguesa, pôr body cameras em intervenções policiais, desenvolver projectos de proximidade com os jovens e as comunidades dos bairros das Áreas Metropolitanas para reforçar a confiança, que levem ao aumento de confiança entre comunidade e polícia, criar campanhas e estratégias para recrutamento de agentes de segurança dentro das comunidades de afrodescendentes e ciganas.

No trabalho quer igualmente promover dentro da política pública de promoção e acesso ao emprego ter programas de emprego apoiado para as comunidades ciganas, ou seja, equipas que façam a ligação entre empresas e candidatos a emprego; criar mecanismos de dissuasão da exclusão de pessoas na selecção de trabalhadores por motivos étnico-raciais, promover dentro da ACT formação específica para inspectores sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial ou regulamentar o estatuto do mediador sociocultural. Na saúde a proposta é reforçar as orientações técnicas e mecanismos de informação e formação dos serviços de saúde “sobre os direitos e as regras que se aplicam a utentes do SNS, imigrantes em geral e pessoas que estão indocumentadas ou em situação irregular”. Na habitação propõe desenvolver mecanismos de apoio jurídico e social ao arrendamento com o objectivo de impedir que proprietários aluguem casas a pessoas ciganas e afrodescendentes.

Quanto à política a deputada diz que uma das propostas será que os partidos tenham mais representatividade mas está à espera da apresentação de todas as listas às eleições legislativas. Para já, o Bloco de Esquerda anunciou que Beatriz Dias, professora de Biologia e presidente da Djass - Associação de Afrodescendentes será a número três por Lisboa, e o Livre tem como número um na sua lista também por Lisboa a presidente da INMUNE, Joacine Katar Moreira, licenciada em História.

Quotas não são a solução, diz PSD

Na sessão, a proposta de quotas foi já “chumbada” pelo deputado do PSD Duarte Marques, presidente da Comissão para as Diásporas do Conselho da Europa. Mais do que criar quotas, “é urgente perceber e combater a origem das discriminações”, referiu. “O abandono escolar precoce nestas comunidades é revoltante” e essa barreira deve ser derrubada, mas as quotas não são a solução, nem na educação nem na política.

Referiu ainda que Portugal “não pode um dia ser apontado como o país da Europa onde a população melhor aceita imigrantes e refugiados e no dia seguinte ser acusado de ser racista”. “Não aceito que a acusação seja feita ao conjunto de Portugal. A situação não é tão dramática como alguns querem fazer crer. (…) Em Portugal há episódios de racismo e xenofobia? Sim, mas isso não faz de Portugal nem dos portugueses racistas.” O deputado deixou no ar a insinuação de existência de “aproveitamento político” e “manipulação” no combate ao racismo que serve “uma agenda mas não uma causa”. 

O seu discurso foi imediatamente alvo de crítica de activistas na sala, do SOS Racismo, José Leitão e Mamadou Ba, e de Myriam Taylor, da Muxima, que o acusaram de falar a partir do lugar da maioria. Também Olga Mariano, activista cigana da Letras Nómadas, referiu: “Fiquei baralhada com a sua intervenção, umas vezes é contra e outras a favor.” Enumerou as discriminações de que são alvo negros e ciganos e deixou-lhe a questão: “Assumiu que há racismo. Mas o que se está a fazer politicamente para combater o racismo nas escolas, no trabalho e na habitação?”

Joana Gorjão Henriques - 9 de Julho de 2019, Público