Alunos que entram na universidade através de quotas já são 30%

Os últimos dados de concurso nacional de acesso ao superior mostram que a percentagem de quem entrou por quotas foi cerca de um terço do total. Há 20 grupos de alunos que têm direito a concorrer a uma vaga reservada para o seu perfil. Nenhuma é para candidatos afrodescendentes ou ciganos. Quotas étnico-raciais foram tema de debate esta semana no Parlamento.

No ano lectivo passado cerca de 30% dos alunos que entraram nas universidades portuguesas fizeram-no através de quotas, ou seja, vagas que foram guardadas para candidatos com determinados perfis, mostram dados do Relatório sobre o acesso ao ensino superior elaborado por um grupo de trabalho nomeado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior​.

Esta semana o tema das quotas nas universidades provocou polémica, tendo estado em debate no Parlamento. A verdade é que as universidades portuguesas já têm quotas previstas anualmente para alunos de 20 perfis diferentes, mas nenhum contempla categorias étnico-raciais. Fá-lo através de regimes especiais, de contingentes especiais e de concursos especiais.

Relatório do Parlamento propõe estudar quotas em universidades para negros e ciganos

Em cada ano lectivo, ao abrigo dos concursos especiais, há um tecto máximo de vagas aprovadas para o concurso nacional de acesso ao ensino público guardados para seis perfis: candidatos que tenham mais de 23 anos; candidatos que têm um diploma de especialização técnica; técnicos superiores profissionais; candidatos que já são licenciados; os licenciados que são candidatos a Medicina; e os estudantes internacionais. No ano lectivo passado, 28% de todos os alunos que entraram na universidade fizeram-no por esta via.

Outra modalidade que prevê quotas são os regimes especiais para cidadãos ligados às missões diplomáticas e aos funcionários públicos portugueses em missão no estrangeiro, aos oficiais das Forças Armadas, aos bolseiros dos países africanos de expressão portuguesa, às missões diplomáticas acreditadas em Portugal, aos praticantes desportivos de alto rendimento e aos naturais de Timor. O total de alunos que recorreu aos regimes especiais foi de apenas 1,6%.

Ainda existem os contingentes especiais que reservam vagas para candidatos dos Açores e Madeira, emigrantes portugueses e familiares, militares e pessoas com deficiência mas até à hora do fecho desta edição não foi possível clarificar junto do Ministério do Ensino Superior a percentagem que representaram no ano lectivo passado.

João Guerreiro, presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior, explica ao PÚBLICO que cada um destes regimes, que podem ser considerados como quotas no ensino superior, varia em termos de condições de acesso. Os concursos especiais são para vagas extra ao concurso nacional, e permitem a entrada de candidatos de acordo com uma percentagem calculada em função das vagas disponíveis; é uma opção das universidades abri-las ou não, explica, e cada concurso especial tem as suas regras.

Já os regimes especiais e o contingente especial funcionam como critérios de prioridade inseridos no concurso nacional de acesso: os candidatos com esses perfis têm preferência de entrada (estando-lhes reservado um determinado número de vagas e competem por elas com candidatos que têm o seu perfil).

Os regimes especiais foram criados para facilitar a entrada de determinados grupos que, pela via geral, não teriam, dadas as suas características, acesso. Os concursos especiais têm a ver com a abertura das instituições para incorporar públicos com diversas origens, escolher os seus alunos, explica Guerreiro. 

A entrada na universidade através do regime de quotas tem estado em debate a propósito do lançamento do Relatório sobre Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal, apresentado esta semana na Assembleia da República e para o qual contribuíram todos os partidos. O documento prevê a hipótese de estudar a sua introdução para alunos afrodescendentes ou ciganos. E propõe que se avalie possibilidades de medidas de acção positiva – criar quotas é uma delas, segundo a deputada do PS, Catarina Marcelino

Nenhuma das quotas já existentes, lembra João Sàágua, vice-presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), responde ao objectivo de “ter uma universidade completamente inclusiva, que não deixa ninguém de fora”.

Quotas étnico-raciais: não

O PS tem, aliás, no seu projecto de programa de Governo um bloco dedicado ao combate ao racismo, xenofobia e discriminação onde refere a introdução de medidas de discriminação positiva (políticas públicas que pretendem corrigir situações de desigualdade).

O CRUP está a trabalhar numa convenção onde se abordou a necessidade de alargar a base social de recrutamento de estudantes e propôs o reforço das verbas de acção social de modo a apoiar os alunos que têm problemas financeiros. Mas nunca a hipótese de introduzir quotas ético-raciais esteve em cima da mesa, diz João Sàágua. “Deve ser estudada com todo o detalhe, tem que se ver as vantagens e desvantagens”, comentou.

Partindo dos dados da OCDE que mostram que “seis em cada dez alunos podiam estar na universidade” mas não estão, os reitores encontram-se a investigar como fazer “o recrutamento” de mais alunos. Porém, consideram que as quotas étnico-raciais “carecem de estudos sérios”: “É mais importante garantir a formação pré-universitária para que cheguem à universidade e garantir acesso à universidade a pessoas que têm condições penalizadoras.” Por isso o conselho sugeriu “reforçar fortemente o orçamento para a acção social”.

Também João Guerreiro prefere encontrar soluções de apoio financeiro em vez de ter “quotas” étnico-raciais: “Acho que é vincar as divisões e o ambiente xenófobo que pode estar na comunidade; seria mais interessante ter um conjunto de benefícios”. Considera as quotas étnico-raciais diferentes daquelas que já existem porque há “um consenso de discriminação positiva” em relação aos perfis que já estão definidos (mesmo que algumas já estejam “obsoletas” como as destinadas aos estudantes dos Açores e Madeira, onde já existem universidades, diz).

Rui Pena Pires, sociólogo que colaborou no projecto de programa eleitoral do PS, explica que “as quotas são sempre controversas e põem em causa o princípio da igualdade, chocam com a ideologia da meritocracia”. Mas, “curiosamente, dentro dos meios liberais começa a haver a noção de que o acesso ao mérito está distribuído de forma desigual”. Considera que em Portugal se poderiam fazer quotas territoriais em vez de étnico-raciais, acrescentando uma alínea ao regime de contingentes especiais, por exemplo, e reservando vagas para alunos de escolas em regiões onde as quebras no acesso a universidade sejam maiores, que “estão periferia de Lisboa”. Isso permitiria que “os melhores alunos de escolas com condições de aprendizagem mais difíceis” chegassem às universidades. Isso “preserva a ideia de mérito”, analisa.

Refere também a necessidade de as quotas serem acompanhadas de outras medidas de promoção de igualdade e de discriminação positiva no território, medidas de apoio socioeconómico às famílias com bolsas ou políticas de realojamento que evitem a segregação. “Só as quotas não chega.” 

Quotas étnico-raciais: sim

Já o antropólogo do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa Miguel Vale de Almeida defende a criação de quotas com critérios étnico-raciais e económicos, à imagem do que existe no Brasil. Isso “permitiu efectivamente a entradas de negros nas universidades”. Acredita que devem ser acompanhadas de bolsas (diferentes das de acção social, que já existem, e com um critério étnico-racial). Para isso, deveriam ser acompanhadas de uma recolha de dados sobre a origem étnico-racial da população no censos, algo que foi chumbado pelo INE recentemente. Vale de Almeida defende políticas dirigidas: “Uma sociedade que quer promover a igualdade de oportunidades tem de estar disposta a promover políticas de acção afirmativa que sejam compensadoras de desigualdades estruturais profundas e ancoradas numa longa história de racismo, exclusão e exploração.”

Mamadou Ba, do SOS Racismo,​ considera as quotas essenciais no acesso à universidade para “criar uma bolsa de pessoas candidatas a bons empregos” e começar “a combater as desigualdades”. Considera também que deviam existir no ensino profissional. “Quanto mais pessoas formadas, com maior capacidade de disputar o mercado laboral em posição de igualdade, mais ferramentas terão para disputar os lugares de poder.”

Bruno Gomes, das Letras Nómadas, explica que em relação a quotas na área da educação “tem reticências”, embora não as descarte. Refere o Programa Operacional Para a Promoção da Educação (OPRE), dirigido a estudantes ciganos do ensino superior, que existe há quatro anos e neste momento tem 40 vagas, 33 delas preenchidas. Por outro lado, o Romaeduca dá bolsas a 100 pessoas, espalhadas pelo país, e ajuda a pagar despesas. Entre 65% a 70% dos alunos do OPRE vêm de bairros sociais ou de vilas com grandes dificuldades financeiras. Reforça: “Mas a área de acompanhamento dos jovens, e de mediação, na universidade e em casa, é muito importante. Quisemos romper com as barreiras que o ensino superior trazia. Muita gente estava na clandestinidade étnica e o OPRE foi a oportunidade de as pessoas verem que há pessoas ciganas a fazer o mesmo percurso que elas.” 

Joana Gorjão Henriques - 13 de Julho de 2019, Público