“Se formarmos mais 10 mil estudantes não vamos resolver a falta de médicos”

Representante da Ordem dos Médicos afirma que o problema está na dificuldade em formar especialistas. Se se corrigissem as deficiências no SNS haveria mais “300 a 400 vagas para formação” de médicos, diz o bastonário.

Ter mais estudantes de medicina não vai resolver a falta de médicos em Portugal, afirma Carlos Cortes, presidente do Conselho Nacional da Pós-Graduação (CNPG) da Ordem dos Médicos. “O problema não está nos estudantes de medicina, está no internato médico e na dificuldade em formar médicos especialistas. As pessoas têm de perceber que se começarmos a formar 10 mil estudantes não vamos resolver a falta de médicos. Falsamente, a questão é colocada aí. O país tem de se concentrar nos hospitais e centros de saúde e melhorar aí para termos mais capacidade formativa”, aponta o também presidente da secção regional centro da Ordem dos Médicos.

“É preciso ir aos serviços e corrigir os problemas em termos organizativos, as faltas que têm sido detectadas — às vezes basta mais reuniões ou mais disponibilidade para formar —, colocar os especialistas nos sítios certos para poderem formar mais médicos e, entrando na engrenagem, será muito fácil conseguir formar mais”, diz Carlos Cortes. Se todos os problemas identificados fossem corrigidos, seria possível “aumentar em algumas centenas as vagas para formação especializada”.

O bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, reforça a ideia: “As vagas podiam aumentar 300 ou 400 se capacitássemos a sério os hospitais nas deficiências que têm, dando formação aos hospitais que não têm e mais vagas a outros. Se conseguirmos corrigir as deficiências do SNS em termos de médicos, aumenta-se a capacidade de resposta para a população e para a formação.” A falta de médicos não está no país. “O problema está no SNS, que tem falta de médicos”, diz. De acordo com os dados da OCDE, o rácio do SNS é de 2,8 médicos por cada mil habitantes.

A formação médica divide-se em duas: a pré-graduada — ensino universitário — e a pós-graduada. Desta, faz parte a formação geral — um ano, no final do qual os médicos têm autonomia para trabalhar — e a formação especializada, que pode ir de quatro a seis anos. Nas unidades de saúde juntam-se, assim, todos os anos, alunos de medicina e médicos dos vários anos de formação.

As faculdades de medicina, referem os três responsáveis ouvidos pelo PÚBLICO, queixam-se de excesso de estudantes. Terão terminado o curso este ano cerca de 1700 alunos. E nas unidades de saúde, o cenário não é melhor. “Não existe muito mais capacidade nos hospitais para acolher internos. Antes de se tomar a decisão de abrir mais vagas ou uma nova faculdade é preciso perceber a qualidade do internato da formação geral. Há queixas de internos sobre a atenção que recebem. Deve ser feita uma análise, que é da competência dos ministérios da Saúde e do Ensino Superior, em função do mercado”, diz Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH).

Lembrando que o curso de medicina tem elevados custos para o Estado e para as famílias, o mesmo salienta que “não faz sentido” que este investimento resulte em emigração ou em médicos indiferenciados. “A necessidade de especialistas a médio e longo prazo é um estudo que não está feito e é a primeira coisa a fazer. Tem de se analisar e criar as condições para que os serviços possam ter essas vagas. É uma falha do sistema ter médicos indiferenciados”, salienta. Desde 2015 que faltam vagas para a especialização. No ano passado foram 466 os candidatos que ficaram nesta situação, segundo dados da OM.

Avaliação das capacidades

“O acesso à formação geral é garantido a todos os candidatos admitidos a procedimento concursal de ingresso no internato médico para o efeito”, explica a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). São 2400 vagas para a formação geral que começa em Janeiro. Já para a formação especializada, explica a ACSS, as instituições de saúde têm de preencher anualmente um questionário de idoneidade e capacidades formativas, que é posteriormente enviado pelas comissões regionais do internato médico à OM.

Perguntam qual o número de médicos assistentes tem cada serviço, intervenções que fazem, equipamentos que dispõem e a sua idade. O bastonário tem alertado para a falta de investimento no SNS, levando à degradação de equipamentos e falta de recursos humanos. “Independentemente de haver ou não mais médicos, a força de trabalho é menor. Entre 1600 e 1700 médicos têm horário reduzido, com 20 ou menos horas semanais. Não é a mesma coisa ter um médico 40 horas por semana ou ter um durante 20”, diz Miguel Guimarães, lembrando o fim da exclusividade em 2009, as reformas e as saídas para o privado e estrangeiro.

É nesses inquéritos que as unidades de saúde dizem quantos internos consideram poder formar. Depois há uma avaliação por parte dos colégios. Quando necessário fazem visitas, que resultam em relatórios enviados às unidades de saúde e ao Ministério da Saúde, “dando a possibilidade de fazer as correcções para [os serviços] terem as vagas que querem”, explica Carlos Cortes. “Identificamos os problemas e damos a chave da solução. Nos últimos cinco anos enviámos entre 500 a 600 relatórios. Tivemos zero respostas do ministério”, lamenta.

A proposta de mapa de vagas da OM é enviada ao Conselho Nacional do Internato Médico (CNIM), até 30 de Junho. E também este organismo, que é um órgão consultivo da ACSS, dá indicação das vagas formativas que considera existir, tendo em conta a rotatividade entre serviços e instituições de saúde que os internos têm de fazer durante a formação.

Segundo a lista provisória de vagas — a final deve ser publicada até ao final de Outubro —, a que o PÚBLICO teve acesso, OM e CNIM apuraram cerca de 1760 vagas. Cerca de menos 100 das indicadas pelas unidades de saúde. Uma parte muito residual são vagas em unidades privadas. Não sendo obrigadas a dar formação especializada, como acontece com o serviço público, os serviços só são avaliados quando pedem idoneidade formativa. O processo de avaliação é idêntico ao do SNS.

Em algumas especialidades, as propostas dos serviços são superiores às da OM e CNIM e noutros dá-se o inverso. “A questão da formação tem vários vectores. Os hospitais, se tiverem mais necessidade de formação de internos para o seu próprio funcionamento vão ter a tendência de pedir mais vagas. Por outro lado, representa um custo acrescido para o hospital estar a formar internos sem ter necessidade”, diz Alexandre Lourenço.

Carlos Cortes salienta que a avaliação da OM “é técnica e científica” e que quando existem discrepâncias com os pedidos dos serviços “é sempre dada uma justificação” aos mesmos. Lembra que o processo não está fechado e que até à lista final deverão ser identificadas mais algumas dezenas de vagas — o que irá tornar este “no maior mapa de sempre”, a rondar as 1800 vagas. “No final de tudo, a responsabilidade é do Ministério da Saúde. As vagas no mapa não são uma decisão da OM.”

Também rejeita eventuais críticas aos números inferiores de vagas apontadas pela OM, em comparação às dos serviços, em especialidades deficitárias como ginecologia, otorrino ou ortopedia. “Todo o processo é transmitido a todas as partes e os mapas são publicados”, diz, referindo que a carência de especialistas tem repercussões na capacidade formativa. “Podemos aumentar as vagas, mas sempre respeitando a qualidade da formação”. Ponto que, afirma o bastonário, a Ordem não vai abrir mão.

Neste momento decorrem duas auditorias — uma do Ministério outra da Ordem — ao processo de atribuição de idoneidades e capacidades formativas. 

Ana Maia - 31 de Agosto de 2019, Público