Ordem dos Médicos “chumba” curso de Medicina na Universidade Católica

Parecer não é vinculativo e a decisão final, que cabe à agência de avaliação do ensino superior, será tomada entre o final de Setembro e o início de Outubro.

Poucas horas de contacto com os doentes, um número de professores insuficiente, problemas na articulação com os hospitais e ainda dúvidas causadas por uma formação que será feita em inglês. Estas são quatro das objecções levantadas pela Ordem dos Médicos (OM) à proposta de criação de um curso de Medicina pela Universidade Católica, num parecer negativo que foi enviado à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES). É esta entidade pública que tem que tomar a decisão final quanto à autorização de abertura dessa formação nas próximas semanas.

O principal problema apontado pela OM prende-se com a “escassez de contacto clínico” por parte dos estudantes. As oito faculdades de Medicina existentes no país – todas públicas – destinam entre 48 e 54 créditos (ECTS, o sistema europeu) para o contacto com doentes. A proposta da UCP prevê 24 ECTS.  “É uma fragilidade. O curso de Medicina é, por excelência, uma área onde a comunicação, o contacto clínico e a humanização são essenciais”, justifica ao PÚBLICO o bastonário da Ordem, Miguel Guimarães.

A OM entende ainda que a proposta da Católica apresenta debilidades no corpo docente. “Apesar de os nomes dos professores apresentados serem de pessoas reconhecidas e de grande qualidade”, há mais de 3000 horas de ensino “por atribuir”, aponta Guimarães. Os docentes a quem já são distribuídas disciplinas no âmbito do possível curso de Medicina têm “carga horária excessiva”.

Além disso, vários dos professores que são elencados pela Universidade Católica como estando garantidos no seu corpo docente trabalham noutras

faculdades, nomeadamente nas da Universidade Nova de Lisboa e Universidade de Lisboa. A OM alerta para os problemas que essa situação pode criar nas escolas médicas que já existem.

Não ficam por aqui as críticas da Ordem à proposta do que poderia ser o primeiro curso de Medicina privado no país e que, se for aprovado, vai funcionar em Sintra. Ao longo de um parecer que tem 12 páginas são apontados outros problemas como a articulação com os hospitais onde os estudantes devem ter a sua formação prática. A Católica prevê enviar os alunos para o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, uma parceria público-privada, bem como para o Hospital da Luz e o hospital do mesmo grupo privado em Setúbal.

Ao todo, os protocolos com estas três unidades de saúde englobam 760 camas o que, para a OM, é insuficiente, dando como exemplo o curso de Medicina da Universidade do Minho, sediado em Braga – onde entram anualmente 120 alunos, mais 20 do que o previsto pela Católica – e que tem 1650 camas protocoladas para a formação. Miguel Guimarães assegura que, dessa forma, o curso da Católica “não permite uma diversidade de patologias nem uma dispersão de estudantes adequada para que a relação tutor-aluno seja ideal”.

A Ordem tem igualmente reservas quanto ao facto de o curso de Medicina da Católica ser ministrado em inglês – com a justificação de que será a forma de atrair estudantes estrangeiros para fazer a formação em Portugal. “Estes alunos vão ter que lidar com doentes portugueses e falar em português”, defende o bastonário dos Médicos.

Há uma semana que o PÚBLICO vem tentado contactar os responsáveis da Universidade Católica no âmbito deste trabalho. Apesar da insistência, a assessoria de imprensa da instituição deu conta de que os responsáveis se encontram “em período de férias” e que teriam apenas disponibilidade para se pronunciar sobre o tema na próxima semana.

A decisão final quanto à autorização de funcionamento deste curso de Medicina é tomada pela A3ES, o organismo público que, desde 2009, tem a responsabilidade de avaliar todos os cursos e instituições de ensino superior já existentes, assim como autorizar a criação de novos cursos.

Os critérios para a aprovação de uma licenciatura em Medicina são semelhantes aos dos restantes cursos superiores – sendo avaliada a qualidade do plano de estudos, das instalações ou a qualificação do corpo docente, por exemplo. No caso de Medicina, há uma exigência adicional que obriga a assegurar a existência de unidades de saúde adequadas ao ensino que receber os estudantes.

A legislação determina que, nos cursos em que existe uma ordem profissional, esta deve emitir um parecer, que é levado em conta na decisão do Conselho de Administração da A3ES, mas não é vinculativo. A agência nomeia uma Comissão de Avaliação, constituída por três membros especialistas na área — dos quais um é estrangeiro —, cujo relatório é central no processo de decisão. A posição final da agência será tomada entre o final de Setembro e os primeiros dias de Outubro.

O processo da Universidade Católica é o único relativo a cursos de Medicina que está pendente na A3ES neste momento. Esta é a primeira vez que aquela instituição propõe a abertura de uma formação superior nesta área.

Na última década, a A3ES recebeu 12 propostas de abertura de novos cursos superiores de Medicina, todos de instituições de ensino privadas. Nenhum foi aprovado. “As razões foram, em regra, problemas com o corpo docente, com a qualidade e capacidade das unidades de saúde e dificuldades com a componente de investigação”, explica ao PÚBLICO Alberto Amaral, que lidera a A3ES desde a sua criação.

A Universidade Lusófona tentou ter um curso de Medicina em 2010, a Universidade Fernando Pessoa, no Porto, apresentou propostas em 2010 e 2012 e a Universidade Europeia concorreu em 2015 e 2017. Mas nenhuma instituição foi tão insistente na tentativa de ter um curso de Medicina como a Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (​CESPU), sediada em Gandra, cidade do concelho de Paredes. Esta instituição — que tem já um curso de Medicina Dentária, por exemplo — apresentou seis propostas de cursos de Medicina, a primeira das quais remonta a 2009 e foi feita em parceria com a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Ao longo deste período, a CESPU “ouviu de tudo”: que o número de vagas definido era curto, que não tinha investigação na área, que o corpo docente não era adequado. “Hoje, 50% da nossa produção científica é na área da Medicina e temos um número de professores doutores suficientes”, garante o presidente da instituição, António Almeida Dias. “A partir deste momento, só se inventarem outra justificação é que haverá argumentos para não aprovar o curso”.

A última proposta da CESPU chumbada remonta a 2017. No próximo mês, a instituição vai iniciar novo processo. 

Para aquele responsável “não há uma única justificação” para que não possam abrir novos cursos de Medicina e a qualidade do ensino só teria a ganhar se fossem reduzidas as vagas nos cursos públicos que já existem. Nas oito escolas médicas existentes entram anualmente 1780 estudantes.

Samuel Silva - 30 de Agosto de 2019, Público