Após oito anos a dar aulas disseram-lhe que afinal o concurso não tinha valido

Professor com nomeação definitiva, trocou a Universidade da Beira Interior pelo Politécnico de Leiria depois de ter ficado em 1º lugar num concurso público que foi contestado por um candidato que entretanto morreu. A decisão do tribunal demorou sete anos a ser proferida.

O relato kafkiano de docente que está há um ano no desemprego, sem receber e que nenhuma das instituições com quem assinou contrato aceita agora de volta

António Delgado tornou-se em 2001 o primeiro português doutorado na área de Belas Artes em Portugal

Foi em 2010 que António Delgado, professor do ensino superior com nomeação definitiva na Universidade da Beira Interior (UBI) desde 2007, soube que tinha ficado em 1º lugar num concurso público aberto pelo Politécnico de Leiria. Trocou a Covilhã pela Escola Superior de Artes e Design do IPL, rescindiu contrato com a UBI e assinou por tempo indeterminado com o politécnico, passando a fazer parte do quadro de pessoal docente daquela escola como coordenador da área científica de Artes Plásticas.

Mudou de casa, de escola, de cidade (para Caldas da Rainha) até que, oito anos depois, o que era para si impensável aconteceu. Por carta, datada de julho de 2018 e assinada pelo presidente do Politécnico de Leiria, foi informado que, na sequência da anulação do concurso decidida pelo Tribunal Administrativo de Lisboa (seis anos depois de apresentada a contestação por outro candidato ao concurso), a instituição tinha decidido não repetir o concurso.

Mais: com a anulação do concurso e de todos os atos praticados após a sua abertura, entendia-se também que o contrato com António Delgado era anulado. Na prática, o professor que ali lecionava há oito anos, estava ‘despedido’. Ficava sem cargo, sem salário, sem possibilidade de dar aulas nem progredir na carreira, sem acesso à ADSE e com todas as despesas para pagar. O último salário que recebeu foi há um ano e nem sequer foi por inteiro.

Entendia ainda o IPL que cabia então à Universidade da Beira Interior reintegrar o professor, pretensão também negada por aquela instituição.

Seis anos para decidir

Com a cessação do contrato de António Delgado em 2010, “já lá vão mais de 8 anos, a UBI contratou os recursos adequados para a partir do ano letivo 2010/11 assegurar as unidades curriculares que eram lecionadas pelo referido docente”, explicou a universidade em resposta ao politécnico, lembrando ainda que nem sequer tinha verbas para suportar mais encargos em 2018 e2019.

Além disso, o reitor da UBI manifestava a sua estupefação por o IPL saber da entrada do pedido de anulação do concurso em maio de 2010, data anterior à entrada em funções em Leiria de António Delgado. E o instituto não só não contestou a ação interposta no Tribunal Administrativo de Lisboa como não avançou por sua iniciativa com a correção das irregularidades de que supostamente padecia o concurso. “Se tal tivesse acontecido, presumivelmente o Doutor António Rebelo Delgado tinha-se mantido ao serviço da UBI até ao encerramento do concurso e não teria esta universidade promovido a sua substituição”, lê-se ainda na resposta.

A verdade é que António Delgado assinou contrato e continuou a dar aulas. A janeiro de 2016 foi conhecido o veredicto do tribunal: o concurso tinha de ser anulado por “violação do princípio da divulgação atempada de critérios, métodos de seleção e classificação final”. Ninguém recorreu e em julho de 2017 a sentença tornou-se definitiva. Entretanto o candidato que tinha contestado o concurso faleceu.

Prejudicado por erros que não cometeu

“Não posso ser prejudicado pela anulação dos atos do concurso em causa. Não fui eu que dei origem à invalidade do mesmo”, reforça o professor que foi o primeiro doutorado português em Belas Artes. Além disso, acrescenta, o facto de ter exercido durante “ mais de oito anos as funções inerentes à categoria de professor coordenador” seria o suficiente, alega, para o IPL poder invocar “causa legítima de inexecução da sentença”, uma figura jurídica que permitia proteger a sua situação e garantir o princípio geral da “estabilidade na carreira, no emprego e no vínculo com a respetiva instituição”.

Esta proteção que se deve aplicar aos docentes no ensino superior levou o Bloco de Esquerda a dirigir, no passado mês de julho, uma pergunta ao Ministério do Ensino Superior. Em respostas ao Expresso, a tutela diz apenas que este é um “problema de concurso cuja resolução cabe na autonomia das instituições de ensino superior e que tem vindo a ser dirimido judicialmente”.

Já o Politécnico de Leiria responde que não estavam reunidos os “pressupostos legais que sustentam a invocação da causa legítima de inexecução”. E que nada mais podia fazer se não executar a sentença, “sob pena de responsabilidade civil, criminal e disciplinar”.

Sobre a não repetição do concurso, também explica que a sentença do tribunal “determinou a anulação do concurso, não tendo condenado o IPL à retoma do mesmo, expurgado dos vícios do procedimento anulado”. E entretanto, as prioridades de reforço do pessoal docente também mudaram.

Entendimento diferente tem fonte ligada ao processo, que garante ser este um caso “inusitado” no ensino superior. “Houve vários concursos realizados naqueles anos que foram anulados. E as instituições ou repetiam os processos ou invocavam a inexecução da sentença pelo facto de os professores terem assumido funções há vários anos ou recorriam em tribunal. Além disso, o candidato que fez a contestação faleceu entretanto”, comenta.

António Delgado reforça a perplexidade: “O principal e único interessado na impugnação – o candidato da casa que não foi admitido a concurso – faleceu e nunca pediu a execução da sentença. Foi o Politécnico de Leiria a tomar as dores do interessado, logo a seguir à sua morte, transformando esta situação em “incompreensível, kafkiana e alheia ao direito”.

Isabel Leiria Jornalista - 21.09.2019 Expresso