Estudantes deixaram vazios cursos em áreas estratégicas para o futuro do país

Licenciaturas em sectores como a agricultura, as florestas ou as energias renováveis ficaram com muitos lugares por preencher no concurso nacional de acesso ao ensino superior.

Entraram quatro alunos em cursos de Energias Renováveis do ensino superior neste ano lectivo. Na única licenciatura em Engenharia Florestal do Norte do país foram apenas dois os colocados. Áreas como a Agronomia ou a Protecção Civil também tiveram dificuldades em atrair alunos, apesar do aumento de procura no ensino superior. Os jovens estão a evitar formações em alguns sectores estratégicos, algo a que as dificuldades com a Matemática ou a “fuga” à Física não são alheios, dizem os responsáveis do sector.

“Atendendo à reduzida atractividade de algumas destas áreas, torna-se necessário iniciar uma reflexão conjunta sobre a oferta formativa em áreas-chave para a economia e a soberania nacional, como seja a área das ciências agrárias e da floresta”, avisava o último relatório do grupo de trabalho sobre o acesso ao ensino superior publicada em Julho, antes do último concurso nacional de acesso. Os resultados das duas primeiras fases de ingresso do novo ano lectivo apenas acentuam a leitura do problema.

O caso da Engenharia de Energias Renováveis é paradigmático. Há três cursos no país (na Universidade de Évora e nos Politécnicos de Castelo Branco e Bragança) que ofereciam 128 vagas iniciais no concurso nacional de acesso. Mas só foram ocupadas três na 1.ª fase de ingresso e mais uma na 2.ª fase.

“Estabeleceu-se uma espécie de cursos de elite no país”, avalia Ana Queiroz, directora do curso de Energias Renováveis do Politécnico de Bragança. Nesta, já estavam “tradicionalmente” a Medicina ou o Direito, por exemplo, e “nos últimos anos juntaram-se” cursos como Engenharia Aerospacial ou a Gestão Industrial. “Quem não está nessa lista, tem muito mais dificuldades de atrair os alunos”.

“E nós ainda temos a dificuldade acrescida de estar no interior”, acrescenta Queiroz. No curso de Bragança não entrou nenhum estudante nas duas fases do concurso nacional de acesso. Ainda assim, não está em causa a sua sobrevivência: “temos tido sempre alunos”. São cerca de 30 em cada ano, metade dos quais portugueses, que acedem à licenciatura depois de concluídos os dois anos de um curso técnico superior profissional, os restantes são estrangeiros, vindos sobretudo de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Brasil.

O que afasta os alunos de entraram no curso pela vida mais tradicional? Ana Queiroz não tem dúvidas: o “estigma” da Matemática, disciplina que é específica para o acesso ao curso, bem como à generalidade das engenharias através do concurso nacional de acesso.

O presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES), Fontainhas Fernandes, concorda. As dificuldades dos estudantes do secundário com a Matemática “são uma barreira” à entrada de muitos alunos em alguns destes cursos superiores.

A isto junta-se, “tendência de diminuição do número de estudantes inscritos” nas disciplinas de Física e Química e Biologia e Geologia no ensino secundário, identificada no último relatório sobre o acesso ao ensino superior, que Fontainhas Fernandes também coordena. Estas duas dimensões exigem “um trabalho muito coordenado entre o Ministério da Educação e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior”, defende o mesmo responsável.

É “também preciso uma estratégia de divulgação” da oferta do ensino superior, sobretudo nas áreas estratégicas, “que envolva as instituições de ensino superior e os Centros de Ciência Viva”, propõe ainda o dirigente da CNAES.

Noutro sector identificado pelo grupo de peritos que aconselha o governo sobre o acesso ao ensino superior, o das florestas, o cenário também causa apreensão. Há cursos (no Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa, na Escola Superior Agrária de Coimbra um terceiro que junta as Universidades de Trás-os-Montes e Alto Douro e do Porto), que preencheram 56% das vagas disponíveis, bem abaixo da média do concurso deste ano (90%). Numa área que também se relacionada com a das florestas, a da Protecção Civil, entraram 27 alunos neste ano, preenchendo 36% das vagas existentes.

O caso do curso de Engenharia Florestal da região Norte é complexo. Recebeu apenas dois alunos (um em cada fase) no concurso nacional de acesso em 26 possíveis, mesmo que quatro empresas do sector se tenham associado para financiar bolsas de estudo que pagariam na totalidade as propinas a 22 estudantes.

“Não fomos capazes de passar a mensagem”, lamenta Domingos Lopes, que dirige esta formação. Aos dois alunos colocados no concurso de acesso juntaram-se mais dois – um militar da GNR que acedeu pelo concurso para maiores de 23 anos e outro estudante já licenciado noutra área.

A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e a Universidade do Porto não querem desistir deste curso, até porque há “empresas desesperadas porque não encontram mão-de-obra”, que regularmente contactam os seus responsáveis à procura de diplomados na área, conta Domingos Lopes. Situação idêntica à relatada por Ana Queiroz, que dirige o curso de Engenharia das Energias Renováveis, no Politécnico de Bragança.

Ou seja, estas áreas não só são estratégicas, como também têm empregabilidade garantida. E mesmo assim os estudantes não as procuram. É, também, uma questão de “percepções”, acredita o presidente da CNAES. Os jovens “querem ir estudar numa área em que sintam que vão poder fazer a diferença”.

“A Engenharia Aerospacial está associada ao futuro. A Engenharia Florestal está associada a desastres”, compara Fontainhas Fernandes. Passa-se o mesmo com a área agrária, prossegue. “Não é, ao contrário do que os jovens possam pensar, uma profissão ou área envelhecida. É mesmo uma das profissões do futuro”. Os 145 colocados em cursos de Agronomia nas duas primeiras fases do concurso nacional de acesso ocuparam apenas cerca de 40% das vagas existentes.

Samuel Silva 16 de Outubro de 2022, Público