Devolver propinas é “positivo”, mas muito aquém do que é preciso

Ainda subsistem muitas dúvidas sobre a aplicação das medidas anunciadas por António Costa. Mas uma certeza já há: sem melhores salários e soluções para a habitação, serão insuficientes.

As medidas de apoio aos jovens anunciadas pelo primeiro-ministro António Costa na noite de quarta-feira são vistas, no meio académico, como positivas, mas muito aquém do que é preciso para convencer os jovens licenciados a ficarem no país, numa altura em que estes vivem “uma realidade desconcertante, de verdadeiro sufoco”, como diz a presidente da Federação Académica do Porto (FAP), Ana Gabriel Cabilhas.

Ainda se sabe muito pouco sobre como será operacionalizada a devolução de propinas, anunciada por António Costa como uma das medidas que irá integrar o Orçamento do Estado, e essa é a principal razão para o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), António Sousa Pereira, não querer, por enquanto, pronunciar-se sobre ela. Maria José Fernandes, que preside ao Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Técnicos (CCSIP) também tem dúvidas, mas ainda assim assume que a possibilidade de os estudantes receberem o valor anual das propinas caso fiquem a trabalhar no país é positiva.

“Todas as medidas tomadas pelo Governo que promovam ou facilitem que os jovens licenciados se fixem no país e não tenham a tentação de ir para fora são positivas”, admite a responsável do CCSIP. Mas logo a seguir, diz que é preciso conhecer “em concreto” como é que ela vai funcionar. A título de exemplo deixa uma dúvida: “Quando é que se implementa? Vai ter efeitos retroactivos? Não sabemos e tudo isto precisa de ser clarificado.”

A esta juntam-se muitas outras dúvidas e o PÚBLICO pediu esclarecimentos ao Ministério da Ciência e Ensino Superior, aguardando ainda resposta: para reaver a propina vai ser preciso apresentar um contrato de trabalho de pelo menos um ano? Como e por que organismo do Estado será devolvido o valor? Confirma-se que quem esteve isento de pagar propinas também irá reaver o valor integral? E qual a previsão de quanto tudo isto irá custar ao Estado?

Sobre a última questão, há estimativas que se podem fazer, mas com muito poucas certezas. Olhando para o número de diplomados do ensino superior de 2022 (89.640) e tendo em conta que 66% são licenciados e 32% mestres, pode-se especular que, caso ninguém emigrasse e todos ficassem a trabalhar em Portugal, a entrega do valor da propina custaria aos cofres do Estado cerca de 84,2 milhões de euros – a soma de 697 euros da propina máxima em licenciatura e de 1500 euros que o primeiro-ministro disse que seria devolvido por cada estudante que concluísse o mestrado e ficasse a trabalhar no país. Mas, entre o total de diplomados há 20% que saem do ensino privado e não é expectável que estes venham a ser incluídos na medida, além de que a probabilidade de ninguém sair do país é praticamente nula.

Ou seja, há mais dúvidas do que certezas sobre o impacto para o Estado desta medida e há também muitas dúvidas no meio académico sobre se ela vai travar a saída de diplomados.

Maria José Fernandes é taxativa: “Entendemos que medidas de carácter fiscal e o aumento de salários são muito mais importantes, porque são estas que movem os nossos jovens”.

O mesmo dizem as presidentes das FAP e da Federação Académica de Lisboa (FAL), Catarina Ruivo. E ambas acrescentam uma questão que acreditam ser essencial e que esteve ausente do anúncio de quinta-feira à noite: a habitação. “A questão das propinas pode ser um incentivo mas acredito que actualmente o problema flagrante no ensino superior é mesmo o alojamento estudantil ou a compra da primeira habitação. Quem tem de pagar 450 euros por mês por um quarto não sente que esta medida lhe resolva os problemas no momento. E essa questão foi deixada de parte ou esquecida”, diz Catarina Ruivo.

Ana Gabriela Cabilhas tem uma opinião idêntica. “Não me parece que esta medida será suficiente para evitar a sangria de talento para o exterior dos jovens diplomados e qualificados. Porque lá fora o poder de compra é outro, os salários são maiores e o que é preciso mobilizar para a habitação é muito menos. As condições para se conseguir emancipar são completamente diferentes do que há no nosso país”, diz.

As duas dirigentes estudantis também saúdam as medidas anunciadas para o IRS, que prevêem a isenção no primeiro ano de trabalho, e reduções entre os 25% e os 75% nos quatro anos seguintes, mas também aqui consideram que não chega, se os salários não acompanharem. A possibilidade de ter de voltar para casa dos pais, no final de uma licenciatura, é uma realidade que assombra muitos jovens, diz a presidente da FAP, insistindo que é preciso mais do que “medidas avulso” e que a habitação tem de estar no centro das soluções. “Esperamos ver esta discussão em sede do Orçamento do Estado”, diz.

Ainda sobre a questão das propinas, e referindo-se aos mestrados, Catarina Ruivo diz que esta era uma boa oportunidade para pôr em prática uma medida que a FAL anda a exigir há muito. “Pedimos há vários anos o estabelecimento de um tecto máximo do valor da propina para os mestrados. Se isso acontecesse, não iríamos agora discriminar os que pagam propinas mais elevadas do que os 1500 euros”, diz. A dirigente diz que a FAL se “congratula” também com as medidas de incentivo à cultura (um cheque livro a quem faz 18 anos e uma semana de férias em pousadas da juventude e quatro bilhetes de comboio para quem concluir o 12.º anos), mas lamenta que o passe gratuito até aos 23 anos não seja estendido a todos os que estão matriculados numa licenciatura, mestrado ou doutoramento, independentemente da idade.

Patrícia Carvalho, 7 de Setembro de 2023, Público