Reitor da Nova ganha dois salários na universidade

Sàágua tem contrato como professor convidado para dar aulas na faculdade onde é professor de carreira. Situação é “Ilegal” para jurista e sindicato. Ministério diz que a lei “não o impede”.

Os actuais vice-reitores Pedro Saraiva e João Amaro de Matos, bem como José Ferreira Machado, que foi vice-reitor no primeiro mandato do actual dirigente da instituição, tiveram todos pedidos de acumulação de funções aprovados pelo reitor, recebendo mais do que um vencimento durante pelo menos um ano lectivo.

O reitor da Universidade Nova de Lisboa, João Sàágua, recebe dois salários na instituição de ensino superior que dirige. Ao vencimento devido como reitor junta, desde 2017, um contrato como professor catedrático convidado para dar aulas de Filosofia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), onde é professor de carreira. Juristas e sindicato do sector veem a situação como “ilegal”. O ministério afirma que a lei “não o impede”. A universidade baseia a prática num parecer com 16 anos.

Sàágua foi eleito reitor da Nova em Setembro de 2017, quando era professor catedrático, o patamar mais alto da carreira universitária, na FCSH. Essa era, aliás, uma condição necessária para poder ocupar o cargo, na medida em que o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior estabelece que “podem ser eleitos reitores de uma universidade professores e investigadores da própria instituição ou de outras instituições, nacionais ou estrangeiras”.

A mesma lei também estabelece que o cargo de reitor (bem como o de vice-reitor) é exercido “em regime de dedicação exclusiva”. Por isso, os dirigentes ficam, por regra, “dispensados da prestação de serviço docente ou de investigação”, sem prejuízo de, “por sua iniciativa, o poderem prestar”.

Depois de eleito reitor, Sàágua continuou a dar aulas na FCSH, tendo assinado um contrato como professor catedrático convidado, ou seja, exactamente a mesma categoria que ocupava na carreira, mas num regime contratual que seria aplicável a alguém externo à instituição. Por essa via, ao vencimento como reitor (6399,53 euros brutos mensais, em 2023) acrescenta mais 1086,21 euros, de acordo com o contrato em vigor para o ano lectivo 2023/24, que o PÚBLICO consultou na faculdade.

A situação é, aos olhos do jurista Paulo Veiga e Moura, especialista em legislação do ensino superior, “completamente ilegal”. O reitor “pode dar aulas, se quiser, mas não ser remunerado”. A situação “é grave”, prossegue, “pois acumula remunerações públicas sem que a lei o permita e quando até quer que apenas exerça o cargo de reitor”.

Depois de consultar os juristas que habitualmente aconselham a estrutura, o Sindicato Nacional do Ensino Superior, também respondeu que “a hipótese de um reitor ser professor convidado na sua própria instituição e ser por isso remunerado é claramente ilegal”.

A Universidade Nova de Lisboa tem uma interpretação diferente. Considera que o vínculo de Sàágua como professor catedrático de carreira se “encontra interrompido pelo exercício de funções de reitor”. É isso que justifica a necessidade de assinar um contrato como convidado para dar aulas na instituição a que pertence, advoga a reitoria da instituição.

Parecer antigo

A universidade entende que esta prática foi validada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES). “De modo a tornar claro a possibilidade de acumulação de funções do reitor, a Universidade Nova de Lisboa solicitou, no passado, autorização ao MCTES, cujo parecer foi favorável.”

A resposta de João Sáàgua vai no mesmo sentido. Questionado pelo PÚBLICO, aquele professor respondeu através da Unidade de Apoio ao Reitor da Nova, para dizer que “em 2007 a Nova contacta o MCTES para obter uma clarificação da legislação em vigor, nomeadamente sobre a possibilidade de o reitor acumular funções de docente durante o seu mandato”. “Foi com base na posição assumida pelo então ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que a Nova tomou, posteriormente, as decisões relativas às funções da equipa reitoral”, acrescenta.

O parecer a que se referem a reitoria e o reitor foi solicitado em 2007. Não só o reitor era outro, como o enquadramento legal era distinto. O pedido da Nova prendia-se com a entrada em funções de António Rendas, que era na altura regente de uma cadeira na Faculdade de Medicina.

A Secretaria-Geral do Ensino Superior entendeu que o reitor podia continuar a dar aulas, baseando-se na Lei da Autonomia Administrativa, que viria a ser revogada meses depois, quando foi publicado o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, que se mantém em vigor. O ministro era, à época, José Mariano Gago, falecido em 2015.

O PÚBLICO consultou o parecer, que mereceu a concordância do ministro, e a questão da acumulação de vencimentos de um reitor que dá simultaneamente aulas nunca é neste referida. Posteriormente, perguntou ao gabinete da actual ministra se o parecer citado se refere “em algum momento ao eventual pagamento de ambas as funções acumuladas”. “Não. A questão não foi suscitada”, respondeu o gabinete de Elvira Fortunato.

Mas isso não quer dizer que o MCTES considere ilegal a acumulação de funções de reitor (ou vice-reitor) e professor na mesma instituição de ensino superior, sendo ambas as funções remuneradas. “Nada na lei o impede”, informou, na mesma ocasião, a tutela.

Único professor de Lógica

“O professor João Sàágua é o único professor da área de Lógica na FCSH e, como tal, não faria grande sentido privar os estudantes da faculdade do contacto com o professor mais sénior da área”, justifica ainda a universidade, em resposta escrita.

“Como forma de obviar essa situação” foi feito um contrato de docente convidado. O contrato é assinado com a própria Universidade Nova de Lisboa, de que Sàágua é reitor, “através da FCSH”, lê-se no documento. Neste ano lectivo, João Sàágua dá aulas nas disciplinas de Metodologias em Filosofia, Lógica e Temas de Lógica, através de contrato a tempo parcial a 33,5% – isto é, um terço do que seria um horário completo.

O acordo que o PÚBLICO consultou foi rubricado por Sàágua e pelo actual director da faculdade, Luís Baptista, em 27 de Julho de 2022, tendo sido renovado no passado mês de Setembro.

Porém, a acumulação de funções do reitor não começou nessa data. João Sàágua tem dado aulas remuneradas na faculdade desde que é reitor – ou seja, fá-lo há sete anos. E, desde 2014, num momento em que era vice-reitor, este professor também já acumulava as duas funções, sendo pago por isso, revelam documentos consultados pelo PÚBLICO na reitoria da universidade.

Sàágua pediu autorização para essa acumulação ao então reitor António Rendas – em 2014, 2015 e 2016. Desde que se tornou reitor, deixou de pedir autorização por entender que é ele a figura máxima da instituição.

A acumulação de funções “é prática comum dentro da academia”, afirmou também a reitoria da Universidade Nova de Lisboa na resposta ao PÚBLICO. Durante os últimos meses, não foi, porém, possível encontrar mais nenhum exemplo de reitores ou vice-reitores – ou presidentes e vice-presidentes, no caso do sistema politécnico – que recebam vencimento pelas aulas que dão nas instituições que dirigem.

Na Universidade Nova de Lisboa, contudo, o caso de Sàágua está longe de ser único. Os actuais vice-reitores Pedro Saraiva e João Amaro de Matos, bem como José Ferreira Machado, que foi vice-reitor no primeiro mandato do actual dirigente da instituição, tiveram todos pedidos de acumulação de funções aprovados pelo reitor, recebendo mais do que um vencimento durante pelo menos um ano lectivo. No caso de Amaro de Matos, o serviço docente pago foi prestado não só na Nova, como em instituições de ensino estrangeiras, no âmbito de cursos de formação para executivos.

Amaro de Matos e Ferreira Machado não quiseram pronunciar-se sobre esta situação, remetendo comentários para a universidade. Já Saraiva informa, em resposta escrita, que deu três horas semanais de aulas numa licenciatura no ano passado, “nos termos em que tal foi acordado, solicitado e autorizado”. No ano lectivo em curso não tem serviço docente atribuído.

Samuel Silva 22 de Janeiro de 2024