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“A UMinho vive dentro de nós”

30-09-2024 | Nuno Passos | Fotos: Nuno Gonçalves

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Fátima e José Luís Nunes são um dos nossos primeiros casais de funcionários. Ela trabalhou na Biblioteca Geral e das Ciências Sociais, ele na Escola de Ciências. O percurso é cheio de emoção e saudade

Como chegaram à Universidade do Minho? Comecemos pela Fátima.
Fátima Nunes (FN): Sou natural de Torre de Moncorvo, em Trás-os-Montes. Fui depois para Moçambique, tirei o curso de Datilografia e trabalhei na biblioteca do Departamento de Mineralogia e Geologia da Universidade de Lourenço Marques [ULM, hoje Universidade Eduardo Mondlane]. Foi aí que conheci o José Luís, casamos e voltamos a Portugal em 1975. Ingressámos no quadro de Adidos, pedindo para vir trabalhar para a Universidade do Minho, em função dos professores e funcionários que conhecíamos e que também vieram no pós-25 de Abril.
Havia necessidade de pessoal e as aulas em Braga começaram no ano de 1975/76.
FN: Sim. Fiquei a trabalhar na rua D. Pedro V [atual sede da Associação Académica da UMinho], na secretaria dos CET - Ciências Exatas e Tecnológicas, que juntava as Ciências e as Engenharias. Era no 2º andar, pois o rés-do-chão do edifício (que era de habitação) tinha garagens e andava-se em obras para se fazer os anfiteatros. O piso -1 veio a dar acesso por trás à rua do Conservatório da Gulbenkian. Eu trabalhava com António Falcão (chefe da secretaria), Maria Helena Madeira e Manuela Minas. Quando se separou os CET, o reitor Carlos Lloyd Braga pediu para optarmos entre secretariar as Ciências ou as Engenharias.
Iam ficar nuns pavilhões verdes junto à Gulbenkian.
José Luís Nunes (JLN): Sim. Havia cinco [pavilhões pré-fabricados]: o da Física, o da Química, o da Engenharia, o das Ciências da Terra e Biologia e ainda o das Oficinas Gerais, cujo equipamento foi adquirido por um engenheiro que tinha vindo das oficinas dos caminhos de ferro de Lourenço Marques [atual Maputo]. Do lado oposto à Gulbenkian existia um portão, para quem vinha de carro da rotunda das Piscinas poder aceder aos pavilhões [hoje, zona de prédios residenciais].
A Fátima foi para as Ciências ou Engenharias?
FN: Lembro-me que escrevi um cartão ao reitor a dizer que tinha sido bibliotecária e, caso não fosse possível trabalhar nessa área, ele decidiria. De facto, faltava gente nos Serviços de Documentação, sediados numa sala do Arquivo Distrital, no Largo do Paço. A biblioteca da universidade estava a nascer no 1º andar da D. Pedro V, para onde “desci”. Ligou-se então duas salas desse piso e com bibliografia para apoiar a comunidade académica. As aulas decorriam no Largo do Paço e na rua do Castelo, mas ainda não no edifício dos Congregados ou na rua Abade da Loureira. Na rua do Forno havia o posto médico, com o dr. Osório.
Como os livros chegavam até si?
FN: Eram enviados em caixas por correio interno, eu arrumava-os e tive o privilégio de contactar com os primeiros alunos e também professores da universidade, que tinham gabinetes no 1º andar (Letras) e no 2º andar (Ciências e Engenharias) da D. Pedro V. Se havia livros já requisitados pelos professores que eram muito solicitados [pelos alunos], acordou-se que esses livros não saíam do gabinete do professor e eu ia então lá deixar um papelinho: “Sr. professor, levo o livro tal, encontra-se na biblioteca para consulta”. Havia esta confiança e liberdade. Por exemplo, se os funcionários das Letras não estavam momentaneamente [trabalhavam na antiga cozinha e no quarto interior do 1º piso], eu recebia o correio protocolado e deixava um bilhete na mesa do seu presidente, o professor Lúcio Craveiro da Silva [seria reitor em 1981-84]. Ele depois agradecia e considerava-me praticamente das Letras. Éramos todos uma família.
Eram poucos e as relações eram próximas.
FN: No último andar da D. Pedro V havia um apartamento, com três quartos, sala e cozinha, que podia ser ocupado temporariamente [por trabalhadores da universidade, até terem alojamento]. Lembro-me que num quarto estava o professor Barreiros Martins, noutro o sr. Pinto da França, noutro nós (após saírem Manuela Minas e marido) e, na sala, um professor açoriano. Havia o acordo de, se algum professor precisasse algo urgente da secretaria, ia ter connosco e eu descia para alguma correção ou documento. Eramos uma família. Entretanto, fomos para uma casa alugada que tinha sido construída na rua Elísio de Moura. Aliás, na zona das Enguardas viviam e vivem diversos funcionários e professores da UMinho que vieram de África. Há também [grupos de trabalhadores] numa cooperativa no bairro da Agrinha e em Santa Tecla.
JLN: Fomos vizinhos do professor António Guimarães Rodrigues [seria reitor em 2002-09], que quando se foi doutorar em Inglaterra veio para lá João de Deus Pinheiro. Quando o professor Lloyd Braga foi convidado para criar a Universidade do Algarve, chamou vários professores (Chainho Pereira, Luís Soares…) e a nós também, mas tínhamos acabado de comprar casa em Braga.
Voltando aos livros, foi a primeira funcionária das nossas bibliotecas?
FN: Quem começou foi Olga Falcão, a esposa do sr. Falcão, que veio da biblioteca da Física na ULM e que mais tarde secretariou o reitor Sérgio Machado dos Santos [1986-98]. Depois dela, na biblioteca ficou Manuela Leitão, por pouco tempo, e então convidaram-me e fiquei satisfeita por continuar na minha carreira.
Os livros ao dispor eram mais portugueses ou estrangeiros?
FN: Ambos. Em áreas como Ciências e Engenharias, havia volumes anglo-saxónicos e não só. As Letras também tinham muita coisa, mas a lusofonia sempre foi uma área forte de estudo e uma obra concorrida era “Teoria da Literatura”, de Vítor Aguiar e Silva [antigo vice-reitor].

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Fátima Nunes na primeira biblioteca do ICS do campus de Gualtar, num edifício partilhado com as Letras e a Economia
Quando deixou a D. Pedro V?
FN: Em janeiro de 1979, mudei para o pavilhão da Engenharia, que cedeu duas salas: uma para a catalogação, que passou a sediar os Serviços de Documentação, e outra para a biblioteca geral. Nessa ala da biblioteca juntou-se Educação e Ciências Sociais, áreas que não estavam na D. Pedro V por falta de espaço. Nos cursos de Engenharia, o primeiro e segundo anos eram lecionados em Braga…
…e o terceiro ano era em Guimarães, no Palácio Vila Flor, que foi cedido à universidade.
FN: Exatamente. Fui eu que enviei os primeiros livros da D. Pedro V para a nossa biblioteca em Guimarães. E nós, Serviços de Documentação, transitámos depois para o pavilhão das Oficinas Gerais, quando estas se fixaram no campus de Gualtar [abriu em 1989] e passaram entretanto a Serviços Técnicos. Tive conhecimento que as Ciências Sociais também foram para Gualtar e havia uma vaga para organizar a biblioteca. Candidatei-me, fui entrevistada pelos professores Aníbal Alves e Manuel da Silva e Costa e passei a pertencer ao Instituto de Ciências Sociais [ICS]. Havia já bibliografia das Ciências Sociais na Avenida Central [junto ao Museu Nogueira da Silva], cujo funcionário foi Tito de Morais.
Em Gualtar, o ICS era no atual edifício da Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas (ELACH).
FN: Letras e Ciências Sociais estavam no 1º e 2º andar e Economia no rés-do-chão. O ICS ganhou o atual edifício quando me aposentei em 2006, onde já não cheguei a trabalhar, ajudei só a orientar a área da biblioteca [junto à sala de atos]. Por falta de verbas, a presidência do ICS não expandiu esse espaço físico. A bibliografia passou a ser encaminhada para a biblioteca geral do campus e eu já não fui substituída [essa função ficou no secretariado].
Continuou-se a lidar com os Serviços de Documentação.
FN: As aquisições de bibliografia nas áreas de Sociologia, Comunicação, Geografia, História e Arqueologia eram sob sua supervisão, por exemplo. O primeiro diretor dos Serviços de Documentação foi Egídio Guimarães, mas quando entrei era Artur Norton, embora eu lidasse mais com Henrique Barreto Nunes, que mais tarde dirigiu a Biblioteca Pública de Braga. Tudo correu bem. Com Eloy Rodrigues como diretor já não contactei tão diretamente, coincidiu com o meu período no ICS.
Continua a vir à UMinho?
FN: Têm-me convidado para o Dia do ICS, a 8 de novembro. É bom rever colegas e professores, vários já aposentados, como Engrácia Leandro, Norberta Amorim, José Meireles, Viriato Capela, Manuel Pinto, Manuela Martins, Moisés Martins… A UMinho faz parte da minha família, aquela que eu conheci e vivi, tenho-a dentro de mim e recordo com muita saudade. Vou-me encontrando com professores como Lopes Nunes, que foi meu presidente na ULM, onde estive em 1971-75.
Como era o quotidiano na ULM?
FN: Veiga Simão foi o seu primeiro reitor [em 1962-70], na altura chamava-se Estudos Gerais Universitários de Moçambique e mudou para ULM em 1968. Os edifícios das Ciências e Engenharias, onde eu trabalhava, estavam nos arredores de Lourenço Marques e mais adiante ficava o de Veterinária. Os funcionários destes espaços eram transportados de autocarro desde a cidade. Já no centro da cidade havia Matemática, Economia… Agronomia na zona da Polana e na Praça 7 de Março ficavam a Reitoria, os serviços administrativos e a tesouraria, com o sr. Alexandre Diogo, que viria a ser o primeiro tesoureiro da UMinho. Muitos professores vieram de lá para a UMinho, por isso não estranhei a realidade em Braga.
Por exemplo…
JLN: O professor Barreiros Martins era diretor das Engenharias, Barbosa Romero e Chainho Pereira estavam na Química [e seriam reitores na UMinho], Lloyd Braga e Isabel Calado Ferreira na Física, Fernandes Carvalho na Matemática, João de Deus Pinheiro na Engenharia Química [foi reitor em 1984-85]…
Conversar aqui no Largo do Paço, “onde tudo começou”, tem um sentimento especial?
JLN: É evidente.
FN: Muitos colegas dizem: chegou a altura de sair da universidade, é tempo de gozar a reforma. Mas o meu sentimento, a ligação à instituição é muito grande e vai comigo para a eternidade, porque não há ninguém que corte este cordão umbilical que sinto com a universidade que eu conheci e onde eu trabalhei. Talvez para quem é de fora seja difícil compreender esta ligação. Mas vim para cá com 24 anos, vi crescer a universidade. Havia uma amizade muito grande e muito humana entre todos, até para além do trabalho. Por exemplo, quando surgia um professor novo, avisavam-me antes de ele chegar à biblioteca, havia esse cuidado. E as festas de Natal eram no salão medieval da Reitoria com os filhos dos funcionários e que tinham prendas. O convívio do São Martinho também era por aqui, o São João já era mais no Hotel Turismo… Foi muito bom.
E teve um jantar de despedida no ICS.
Foi em novembro de 2006, no restaurante do campus. Tenho em casa as fotos e o email desse convite enviado pela Filomena Silva, coordenadora da secretaria. Estava um temporal assustador, mas vieram quase todos, até o professor Joaquim Fidalgo do Porto. Esse carinho, atenção e humanidade marcaram-me.

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José Luís Nunes recebe a medalha de 25 anos de serviço público pelo administrador Aguilar Monteiro, num aniversário da UMinho, na Reitoria
José Luís, conte-nos a sua história.
JLN: Sou natural de Ferreira do Zêzere, distrito de Santarém. Fiz a tropa em Luanda e tinha um conterrâneo em Moçambique, decidi depois ir ter com ele. Conheci a Fátima na ULM e viemos para Braga em 1975. A primeira pessoa com quem falei [na UMinho] foi com o jovem engenheiro António Guimarães Rodrigues, passou o ofício do meu primeiro serviço: ir a oficinas automóveis pedir peças para apoiar em breve o início das aulas de Metalomecânica. Em frente ao Theatro Circo, o gerente do stand da Opel recebeu-me muito bem e garantiu logo as peças, havia um sentimento de contentamento e expectativa por arrancar a universidade. Nos escritórios da Mercedes, da Toyota e da Ford, que eram mais abaixo, foi igual. Curiosamente, a universidade só tinha como viaturas o Peugeot 404 (“do” reitor e com motorista) e uma motoreta.
O que fez depois?
JLN: Eu e os colegas fazíamos “de tudo”, como ajudar a descarregar materiais e secretárias na D. Pedro V, que chegavam na carrinha da Casa Sonolar. Entretanto, os professores costumavam fazer apontamentos para copiar na reprografia [no Largo do Paço] e levavam-nos para os alunos na D. Pedro V. Num desses momentos, cruzei-me com os professores Lopes Nunes e Gaspar Soares de Carvalho e perguntaram-me se eu queria ir para as Ciências da Terra. Fui para o laboratório de Sedimentologia e, por exemplo, replicávamos aí o que a natureza faz, como os minerais que vemos nas dunas da praia de Viana do Castelo. Nesse departamento só houve doutorados uns anos mais tarde.
Como foi a mudança das Ciências da Terra desde os “pavilhões verdes” para Gualtar?
FN: Ainda não o havia edifício da Escola de Ciências. Nos atuais Serviços Académicos, junto às escadas, do lado esquerdo eram as Ciências e do direito as Engenharias, havendo ligação pelos corredores às Letras.
JLN: A transferência de equipamentos foi complicada, porque alguns materiais eram muito sensíveis e outros eram pesados demais, como amostras de minerais.
Que outros trabalhos o marcaram nas Ciências da Terra?
JLN: Apoiei muito trabalho de campo no litoral Norte, nos caulinos em Alvarães, Barqueiros e Prado, nos granitos na serra de Arga, em estudos na Peneda-Gerês… aprendi muito e com muito prazer. Lembro-me que Soares de Carvalho criou um laboratório natural de geologia junto ao Hotel de Ofir, que se mantém. Ou de professores como Carlos Leal Gomes no lítio, Graciete Dias nos granitos, Amália Braga nos sedimentos, Helena Pato Granja e Renato Henriques na costa litoral... e José Brilha, a quem dei conta em 2004 que ia aposentar-me. Fizeram-me um grande jantar de despedida, eu não esperava!
É um privilégio reencontrar professores, colegas e antigos alunos?
JLN: É um privilégio e uma honra quando vejo na rua antigos professores como Chainho Pereira, Carlos Couto ou Manuel Gama e nos cumprimentamos cordialmente. E por vezes reencontramos-nos em situações muito tristes, como na recente despedida do antigo reitor Guimarães Rodrigues ou do professor Maia Neves.
Vocês conheceram todos os reitores que passaram pela UMinho.
FN: Sim. O atual [Rui Vieira de Castro] foi como aluno, trabalhava eu na biblioteca na rua D. Pedro V. O anterior [António Cunha] conhecemo-lo também nessa altura, como filho do dono da Sonolar. Cada reitor deixou a sua marca. Mas o primeiro [Lloyd Braga] marcou pela sua visão, exigência e trabalho, bem como pelo à-vontade e trato.
Imaginavam a UMinho passar de 240 alunos e oito cursos há 50 anos para os atuais 21.000 alunos em mais de 200 cursos e somando 80.000 diplomados?
JLN: Quem viu Braga – e Guimarães – há 50 anos, esta mudança e dimensão era impensável. E isso foi muito graças à universidade, não tenho dúvidas. A região e o país também se desenvolveram.
Que visão têm para os próximos 50 anos?
JLN: Quando viemos em 1975, usávamos uma máquina de escrever Messa, ao virar para o século XXI vieram os computadores e telemóveis, hoje temos a inteligência artificial… Por exemplo, os jovens das tecnologias e ciências da computação “escolhem” agora o emprego, pois há muita oferta nessa área. Mas as tendências no conhecimento e na inovação nas próximas décadas são difíceis de prever…!