Bolseiros de doutoramento sem receber e “desamparados” devido a atrasos da FCT

Bolseiros ficaram sem receber por atrasos na resposta da FCT aos pedidos de prorrogação da bolsa. Sem salário, bolseiros tiveram de regressar a casa dos pais ou cancelar consultas de psicologia.

Há quem volte a morar com os pais, quem pare de tomar medicação ou quem se entregue a dois trabalhos (mesmo sem poder legalmente fazê-lo). Tudo porque não recebem resposta, nem salário das bolsas de doutoramento. Alguns dos bolseiros que pediram um prolongamento da bolsa que lhes foi atribuída – uma prática comum para quem pede menos do que os quatro anos de financiamento máximo – não têm tido respostas sobre os seus pedidos e estão num interregno das suas vidas: não têm salário nem resposta sobre a prorrogação da bolsa de doutoramento, mas também não podem arranjar outros empregos.

Quando se pede uma bolsa de doutoramento, num concurso definido e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pode-se pedir o financiamento do projecto de investigação que o estudante pretende levar a cabo até quatro anos. Mas nem sempre é assim. Alguns estudantes pedem financiamento para dois ou três anos e, quando não chega, pode ser pedida uma prorrogação – sem nunca ultrapassar o máximo de quatro anos. Os atrasos na resposta a este pedido que se têm verificado nos últimos meses criam dificuldades aos bolseiros: depois do final da bolsa, e enquanto não há resposta, ficam sem vencimento. Os bolseiros não são apenas estudantes, muitos dos doutorandos participam também activamente em projectos de investigação dentro dos grupos científicos das instituições em que estão, além de produzirem artigos científicos e apresentações de resultados ao longo do período de doutoramento.

A FCT, principal instituição que financia a ciência em Portugal e que está na dependência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior aponta para o compromisso “de ambas as partes”, nomeadamente quanto à duração da bolsa. Nestas prorrogações, responde ao PÚBLICO, “a análise tem de ser cuidada porque implica alterações das condições que estiveram na base da avaliação e das verbas públicas alocadas”. Segundo a FCT, estes pedidos de prorrogação passaram de excepcionais a “muito frequentes” com o número de pedidos a triplicar desde a pandemia da covid-19 – sem quantificar estes valores.

Segundo esta instituição pública, em 2019 foram feitos 1100 pedidos, enquanto em 2022 e 2023 (neste ano, o número é provisório) houve 2500 pedidos de alteração – o que não inclui apenas prorrogações, mas também mudanças nos centros de investigação ou nos planos de trabalho. No início de 2024, haveria 400 pedidos de alteração, “um terço” dos quais estará agora na tramitação final, indica a FCT. Não foi esclarecido, no entanto, quantos pedidos apenas de prorrogação foram feitos, nem quantos bolseiros estão actualmente sem resposta já após o prazo final da sua bolsa.

“Estamos desamparados”, qualifica uma bolseira de 41 anos ouvida pelo PÚBLICO. Pediu a prorrogação da bolsa em Setembro de 2023 e não recebe desde Novembro. Gastou boa parte das poupanças a colmatar as despesas que tem e já teve de renegociar o crédito à habitação para acomodar a ausência de salário. “Não tenho outra fonte de rendimento”, diz.

Há um motivo para a falta de outras verbas. Os bolseiros de doutoramento estão abrangidos pelo regime de dedicação exclusiva, sendo que a acumulação de funções é reservada a trabalho académico ou associado à investigação que estão a fazer. Esta exclusividade adensa as dificuldades dos bolseiros que ficaram sem resposta. Mesmo nestes períodos sem salário, se vierem a receber uma resposta positiva da FCT, não podem ter nenhum contrato com outra empresa neste período, uma vez que serão previsivelmente ressarcidos com retroactivos durante estes meses sem salário nem resposta.

Outro bolseiro de 31 anos ouvido pelo PÚBLICO não teve outra hipótese. “Quando tens um trabalho com determinado salário, a tua vida está estruturada para aquilo. Quando isto deixa de acontecer, é difícil sequer colmatar as despesas.” Este bolseiro deixou de receber em Dezembro e, por isso, passou a acumular dois trabalhos: durante a noite, trabalhava num bar até às 2h da madrugada e entrava depois ao serviço num restaurante das 9h às 14h. A necessidade forçou a esta decisão de trabalhar mesmo sem contrato, apenas para fazer face às despesas de alimentação e de renda. Os transportes ficam de fora: “Desde aí que não carrego o passe. Ou passo atrás de alguém ou vou a pé.”

Voltar à casa de partida

Aos 35 anos, outro bolseiro viu a ausência de respostas prolongar-se no tempo. O pedido já deu entrada em Julho, mas desde Novembro que não recebe. “Em Novembro ainda não mudou muito [na minha vida] porque tinha a expectativa de que era apenas um atraso e que na pior das hipóteses ia receber [salário] em Dezembro.” Reconhece que foi um erro. “Saí do quarto [arrendado] em que estava e voltei para casa dos meus pais”, conta.

O regresso à casa de partida, como um recuo angustiante em qualquer jogo de tabuleiro, não é caso único. Outra bolseira, de 29 anos, relata uma experiência similar. Ainda recebeu este mês de Janeiro de 2024, mas a ausência de perspectivas e as histórias que lhe chegam de outros bolseiros motivaram a decisão de regressar à terra natal. O intuito é pragmático: “Evito pagar uma renda que é insustentável nestas condições.”

Nenhum dos seis bolseiros com quem o PÚBLICO falou quis revelar o seu nome por receio de que isso afectasse o resultado dos seus pedidos de prorrogação de bolsa. “Tenho medo que jogue contra mim”, confessa uma das bolseiras ouvidas.

“Os bolseiros de doutoramento estão a completar a sua formação, mas também a trabalhar e a produzir nas várias áreas de conhecimento onde são um apoio essencial à investigação”, afirma Sofia Lisboa, vice-presidente da Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC). Como esta é uma bolsa de investigação, e não um contrato de trabalho como reivindica a ABIC, caso a resposta aos pedidos de prorrogação seja negativa não haverá direito a subsídio de desemprego após estes dois ou três anos de trabalho, por exemplo.

A solução expectável de pagar com retroactivos também fica aquém. “Como é que se contabiliza o tempo que as pessoas perderam? Muitas destas pessoas não conseguiram estar 100% dedicadas à investigação. Umas não sabiam que respostas iam ter, outras tiveram de arranjar outras formas de subsistir”, diz Sofia Lisboa. Esses meses poderão ser pagos em retroactivos, mas não são recuperados em tempo de trabalho – no fundo, quando regressam à bolsa, já perderam os meses anteriores porque a prorrogação conta a partir do fim do período de bolsa anterior. No entanto, a FCT também não respondeu sobre as condições após um pedido aprovado de prorrogação.

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Tiago Ramalho, 14 de Fevereiro de 2024, Público